quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Auto-diagnóstico: historiofilia, ou historiolatria

Diagnostiquei-me com uma nova síndrome psicológica: a historiofilia, uma variante atenuada da síndrome de Diógenes, a doença dos "acumuladores", uma doença do espectro do Transtorno Obssessivo Compulsivo (TOC). Seria eu historiólatra? Sofreria eu historialismo? Ou de neofobia?

Pouco entendo tanto de Grego como de Latim, mas sei o quanto é perigoso flexionar desavisadamente seus apostos, radicais e sufixos. A melhor ilustração para isso é a tradução seca de um dos maiores anátemas modernos: a pedofilia. Ora, pedo, do grego, significa “criança”, daí, por exemplo, a pedagogia ser a arte de ensinar crianças. Philia, do grego, significa “amar”: daí os orquidófilos, Teófilos e hemofílicos, que amam respectivamente a orquídeas, a Deus e ao sangue. Portanto, alguém de raso conhecimento do grego, como eu, poderia traduzir por pedófilo àquele que “ama crianças”. E o pedófilo provavelmente argumentará que de fato, ama às crianças. Porém, sabemos, as “ama” de um jeito errado, criminoso. Talvez a nomenclatura não esteja correta, e o melhor seria pedofilocida: aquele que trucida o amor das crianças. Por si próprias.

Transposta a digressão: a Síndrome de Diógenes, conheço de um ou dois documentários da TV à cabo e de uma ou duas reportagens do José Luís Datena: caracteriza-se por acometer normalmente pessoas idosas, que isolam-se do convívio social e fazem de sua casa uma “toca” intocável, na qual acumulam objetos velos, inúteis, ou mesmo sucata e recicláveis catados da rua, dizendo que os guarda pois ainda pretende deles fazer uso. Na mais chocante reportagem, obviamente do Datena, teleacompanhei uma senhora idosa com lágrimas nos olhos enquanto funcionários da Prefeitura retiravam 5 caminhões de lixo de sua casa felizmente própria pois herdada, cujos cômodos estavam entulhados até o teto da memorabilia mais aleatória. Baixinho, protestava, amparada pela vizinha, sua amiga de infância:

- São as minhas coisas!...

Meu caso não é tão extremo, nem de longe. Mas cada vez mais venho progressivamente percebendo o quanto para mim não é saudável cercar-me de objetos que lembram-me meu doloroso passado familiar e de como tenho, progressivamente, sentido a urgência de, para mais de elaborar isso, desfazer-me desses ítens inúteis que guardo com desvelo e afeto, pois apego-me às memórias que me despertam.

Os mais cotidianos e inescapáveis objetos de todos são as roupas, e é curioso como algumas delas cercam-se de um halo de memórias, em particular aquelas que repassamos ao ver as fotos de eventos especiais. Em roupas de festa gastamos dinheiro, e as usamos raramente, com cautela para não repetí-las no mesmo grupo. Nunca fui muito consumista nem tive um orçamento muito folgado, portanto raramente compro roupas; mas quando meus olhos pousam-se sobre uma peça e me apaixono, a compro. Pois das vezes que não comprei, arrependi-me de ter deixado escapar talvez, a única bermuda, biquíni ou colete que um dia despertou minha atenção.

Algumas dessas roupas “de balada” ou “de marca” que usei no máximo 10 vezes, durante a minha adolescência, até há pouco eu ainda guardava, perfumadas, em minhas gavetas, mesmo que há mais de 8 anos sem uso. Embora muitas ainda me sirvam, nem tudo que é suitable para alguém com 14 anos o é para alguém com 28.

Há menos de 2 meses fui visitada por meus únicos tio, tia, primo e prima, cariocas. Meu primo com 14, minha prima com 15 anos. São sei pq senti a urgência de repassar-lhes algumas dessas roupas, que eu guardava tão ciosamente, ainda novas, de boa qualidade. Não são o tipo de roupa que se dá para caridade, pois além de festivas, são, ainda, “novas”, tendo sido lavadas apenas 2 ou 3 vezes. Senti um misto de alívio e dor no coração enquanto entregava à minha prima adolescente e sonhadora algumas blusinhas muito bonitas, mas que não posso mais usar sem parecer meio ridícula, pois são roupas de adolescente. Foi muito difícil desapegar-me delas e de parte das lembranças de noites memoráveis em que me emolduraram. Mas espero que adiante ornem noites ainda mais memoráveis às lembranças ainda por construir de minha única e pasmem, quase ruiva, prima Gisele Rani. Fico feliz por ela e sei que, tendo uma pataforma familiar segura, poderá alçar vôos muito mais altos que os meus.

Depois que desfiz-me dessas peças de roupa tão preciosas, não pelo que custaram, mas por meu apego emocional, questionei-me se não o fizera num lampejo suicida. Sempre fui muito apegada a tudo que é meu, e tudo o que é meu é-me sobremaneira precioso, e o guardo com zêlo, ao alcance da mão. Estaria eu, sem me dar conta, passando meus objetos adiante já encaminhando a partilha de meu parco espólio?

Pensei sobre isso até hoje, e hoje decidi-me que não. Decidi-me acerca disso enquanto no mesmo dia livrei-me de dois e acalentei a um itens de memorabilia pessoal. Livrei-me de mais dois objetos com memória e trajetória, em feliz ocasião natalina. A respeito do terceiro objeto, o protagonista desta postagem, acalentei uma memória, e dois segundos depois diagnostiquei-me, pretensiosamente, como memoriólatra.

Cabe relatar as memórias de um objeto? A quem não interessar, autorizo-o a pular todo o resto deste texto. Talvez isso seja algo doentio, mas de todos os objetos que me cercam, guardo memórias. Nesta antevéspera de Natal, preparando-me para viajar, tirei do armário uma malinha despretensiosa, pequena, trivial, azul-petróleo, com inscrições em verde de uma agência de turismo. Para o visitante desavisado, um objeto que nada vale, de má qualidade, promocional. Mas apenas eu sei o quanto me vale esta malinha. Ela já tem 20 anos, embora eu a mantenha quase impecável. A guardo com cuidado pois foi o primeiro prêmio que recebi, gratuitamente, em toda a minha vida.

Calculo que isso transcorreu entre meus 7 e 8 anos, pois ainda morava em Rio Claro e já sabia ler. Meu avô, que era militar da reserva, fôra convidado para um jantar de gala, e eu fui junto com toda a família. Eu com um lindo vestido cor-de-rosa, que minha avó me costurara na cozinha de nossa casa. Nunca eu me sentira tão garbosa. No jantar foram sorteados prêmios, de acordo com etiquetas pregadas, aleatoriamente, abaixo das cadeiras no salão. As pessoas deviam, portanto, olhar embaixo do próprio assento para ver se haviam ganho algo. Olhei não só na minha, mas em todas as cadeiras de nossa mesa, e nenhuma etiqueta havia. Já lá pelo fim da festa, o crooner anunciou mais uma vez:

- Ainda temos vários prêmios para ser recebidos.

Muitas pessoas posudas não se deram ao trabalho de checar seu tamborete. Nunca fui posuda. E era então espontânea. Não tive dúvida, engatinhando, e como era então pequena, esgueirei-me por debaixo das cadeiras das mesas circundantes, driblando as pernas dos convidados até achar um selo. Descolei-o e saí debaixo da cadeira, para surpresa da que nela estava sentada. Do chão, disse-lhe:

- Moça, tinha um selo embaixo da sua cadeira, posso pegar pra mim?

Ela deu um sorriso, afagou meus cabelos e meneou que sim. Corri para meu avô e disse-lhe ofegante:

- Olha, Morzinho, eu achei um prêmio!

Ele sorriu, abraçou-me, olhou ao selo e disse:

- Parabéns!

Corri então para o palco e troquei o selo por esta malinha, de propaganda, que ainda uso. Ao olhar para ela sinto algo da felicidade desta noite em que a ganhei, com meu vestido bonito, com a generosidade daquela desconhecida, com o parabéns amoroso e convincente de meu avô.

Muitas outras malas mais posso comprar. De melhor qualidade. Mais belas. Mais resistentes. Mais posudas. Mas nenhuma delas me trará tanta alegria quanto esta, que evoca-me um abraço de avô e uma lembrança feliz.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Causos escolares - A suástica tatuada

Este é mais um episódio suscitado pelo ambiente prisional. Desta vez no CRM, Centro de Ressocialização Masculino de Rio Claro, interior do estado de SP, Brasil. No qual trabalhei durante 6 meses, no segundo semestre de 2008, lecionando tanto História quanto Geografia – além de supostamente Sociologia e Filosofia.

No corrente ambiente político de meu estado, sob os sucessivos governos do PSBD, partido Social Democrata, cujo símbolo é o ufanista tucano, foi perceptível o investimento maciço no SAP, Superintendência de Administração Penitenciária e na área de Segurança Pública em geral, simbolizada pela tropa de elite da PM, Polícia Militar Paulista: a ROTA, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar.

É engraçado lembrar de Paulo Salim Maluf, ex-governador, ex-prefeito da capital, ex-candidato à presidência da República, também famoso pelos “estupra, mas não mata” e “se o Pitta não for um grande prefeito, nunca mais votem em mim”:

- Eu vou colocar a RRRRota na rrrrua.

Com um ére rosnado, pesado, intermitente, como um ronco do motor de um carro a álcool falhando ao dar a partida, bem paulistano, da Moóca. A respeito de Paulo Salim Maluf, me contaram, e felizmente não me lembro, que durante sua campanha presidencial perdida para Tancredo Neves, toda vez que Paulo Maluf aparecia na TV eu, com 3 anos de idade, abria um grande sorriso e batia palminhas. Não sei se ele usa algum tipo de macete subliminar, mas eu gostava muito de Paulo Maluf aos 3 anos de idade. De minha primeira infância acá, eu algo evoluí. Muitos eleitores não, haja visto que mesmo nas últimas eleições do corrente ano ele foi reeleito, com todos os seus éres e inquéritos por corrupção (procurem por malufar num bom dicionário), a deputado federal, e com muito expressiva votação. O Malufismo ainda viceja, tristemente, nas conservadoras hostes paulistas...

A evocação da ROTA visava aterrorizar aos criminosos, pois a ROTA é “faca na caveira”, a versão paulista do BOPE, Batalhão de Operações Especiais fluminense, afamado pelos filmes “Tropa de Elite”.

Devo reconhecer que o investimento em segurança resultou na queda das estatísticas de homicídios, se é que tais estatísticas merecem algum crédito, mas são as únicas das quais disponho. Só mais um parêntese a respeito de “estatísticas”: enquanto eu trabalhava na FEBEM, lembro de abrir o Jornal Cidade e ver uma foto sorridente do diretor da ONG, Organização não Governamental, à qual fora terceirizado grande parte do tratos aos “menores internos”. Na entrevista, ele afirmava enfaticamente que o índice de reincidência entre os egressos de sua unidade era zero. Dei uma gargalhada convulsiva ao ler isso. Ri de como ele podia afirmar publicamente algo que todos que trabalhavam lá sabiam ser falso... Muitas vezes eu não vejo necessidade de assistir a programas de humor pois a realidade já é-me suficientemente risível.

Voltando ao CRM, bloggeira-windows que apercebo-me: é uma cadeia, dentro do possível, “decente”. Não conheci-lhe todas as dependências, nem as celas. Mas parecia-me organizada, limpa, relativamente bem-equipada. É uma das poucas cadeias brasileiras que oferece trabalho a seus apenados. Os em regime fechado trabalham em funções manuais da indústria. Os em regime semi-aberto trabalham na Ludival, que fabrica sofás e na Tigre, indústria de tubos e conexões, além de outras fábricas menores da cidade. Por mais que sejam explicitamente explorados como mão-de-obra barata, é louvável que os gerentes destas fábricas contribuam para a ressocialização dos presidiários.

Os do regime semi-aberto têm hora certa para chegar, se não retornarem, são considerados fugitivos. Lembro-me que certo poente eu estava indo dar aula pela rua de terra, embaixo de espessa chuva e divisei, na beira da via, um de meus alunos andando apressado, carregando pelo braço sua bicicleta. Se ele fosse nela, com certeza escorregaria, por isso a arrastava. Ao passar por ele e vê-lo molhado até os ossos de chuva até pensei em oferecer-lhe carona. Mas ao ver-lhe o uniforme prisional amarelo ensopado, desisti. Não pq ele fosse molhar o banco do meu carro, mas pq ele era, afinal, um presidiário. E eu sequer cogitava por qual crime fora preso. E com certeza não é prudente para uma mulher sozinha, numa rua de terra, numa quebrada, oferecer carona a uma pessoa que ela sabe, objetivamente, ser um criminoso. Coloquei minha própria segurança acima de qualquer pena que eu estivesse a sentir por sua triste situação.

Passei sem olhá-lo e ele prosseguiu apressado, pois sua hora para chegar se aproximava. Outro aluno seu colega de sala, mas do regime fechado é o mote desta postagem. Como professora, sou uma “de fora”, posto que quem dá aula no sistema penitenciário e na Fundação CASA são professores regulares da Secretaria Estadual de Educação, os mesmo que dão as aulas regulares na rede de ensino público. E é ótimo que assim seja, pois pessoas “de fora”, sem nenhuma relação empregatícia com o SAP têm convívio virtualmente diário com seus “clientes” e podem, de certa forma, “fiscalizar” o trato que é dispensado aos encarcerados. Por ser “de fora”, não tenho acesso às fichas e, portanto, desconheço por qual crime e por quantos anos cada um estará preso.

No CRM dei aulas a uma turma de 50 alunos do Ensino Médio. Muito variado era o perfil, étnico, etário, educacional, de meus alunos. Como eram muitos, de poucos guardei o nome, em especial não me lembro o nome deste, a quem me referirei apenas como o ornado por uma suástica.

Idoso. Mais de 60 anos, com certeza. Cabelos bem alvos algo crescidos, e abundantes. Trajava o uniforme ocre ou cáqui, da cor de burro quando foge, demonstrando ser do regime fechado. Nunca soltou uma só palavra nos seis meses em que lhe dei aula. Jamais pediu para ir ao banheiro, ou tomar água. Sequer à chamada respondia verbalmente, apenas acenava com a mão que estava ali. Sentava-se na primeira fileira, não conversava com ninguém, fazia sua lição direitinho e tinha todos os disputados vistos. Não seria motivo de pousar-lhe o olhar duas vezes não tivessem meus olhos, já à primeira, divisado o número abundante de tatuagens que ostentavas, mesmo 75% de seu corpo estando recoberto por seu uniforme. E sobretudo, uma tatuagem em especial.

Todos os prisioneiros usam alpargatas, dessas bem chinfrins que descolam as tiras. E este senhor tinha seus pés bastante tatuados, com essas tatuagens de cadeia, tortas, feitas com tinta de caneta esferográfica e aparelho de barbear. Uma delas quase piscava pelo anátema que desperta a todos que tenham vivido no século XX: uma suástica.

Podem argumentar que este é um antigo símbolo de proteção asiático, mas não: qualquer um que tatue atualmente, no Ocidente, uma suástica, sabe perfeitamente que está fazendo apologia ao Nazismo personificado no candidato a anti-Cristo mais recente: Adolf Hitler.

Não surpreendia tanto que alguém, numa cadeia, exiba uma suástica, mas a pela morena em que ela estava tatuada. Este apenado não chegava a ser “mulato”, mas percebia-se-lhe não só o pé na cozinha como a mancha mongólica. Era um brasileiro, de cabelo enrolado, nariz largo, olhos amendoados e pele morena.

Lembro-me dele com curiosidade, não só do pq estava preso, mas por quais caminhos alguém tatua, improvisadamente, com tinta de caneta Bic uma suástica na pele morena miscigenada e vira-latas que Hitler destinaria à “eutanásia”. Pois é, para que assistir programas de humor, ou até ler livros de filosofia se os próprios fatos corriqueiros do cotidiano são depositários de uma galhofa reflexiva tão irônica?

De como levei meu primeiro chifre

Chifre”, hoje em dia, é símbolo de traição, adultério. Enquanto digito isso lembro-me de uma estátua confeccionada por Michelangelo Buonarotti, de Moisés chifrudo. E de como isso nada diz a respeito da fidelidade de Séfora de Midiã, mas muito a respeito da força e poder de Moshe Rabenu. Até o significado dos cornos são historicamente determinados!

No português brasileiro corrente, “chifrar” não é o ato de um animal ferir com seu chifre a outrém (Êxodo 21: 28-31), mas equivale-se ao “pular a cerca”,pastar na grama do vizinho”. É um dito popular que o chifre é uma coisa que não existe, mas que os outros colocam na sua cabeça. E também diz-se que aquilo que os olhos não vêem o coração não sente.

Agora algo escolada nas frugais intermitências da vida, consciente da falta de orientação e do machismo familiarmente incutido em meus alunos, digo em toda oportunidade que apresenta-se, já desde a quinta série que o chifre é como a morte, muito democrático. Que todo mundo, um dia, levará, e dará uma chifrada em alguém, adicionando ao ditado corrente das certezas da vida: a morte, os impostos e ser, ao menos uma vez, chifrado. Talvez isso algum dia impeça um crime passional, por isso não perco a oportunidade de banalizar tal fato, afirmando que não é algo “tão grave assim”. Não pretendo com isso estimular nenhum adultério, apenas tento quiçá prevenir alguns acionamentos futuros da lei Maria da Penha ao despir meus alunos de um centímetro de sua misoginia latinamente implementada.

Levei meu primeiro chifre (do qual soube) creio que à esta altura dos meses, dez anos atrás. Vivo hoje os últimos dias de meus 27 anos considerando-me já algo adulta. Escrevendo do meu presente, se eu fosse colocar minha vida em balanço, J foi o grande amor da minha vida, e meu mais longo relacionamento, de longe. Tive outros namoros e amores, de 8 meses, de 6 meses, de 1 ano e meio; mas nenhum deles marcou-me tanto como este, de 4 anos, entre meus 17 e 21 anos, que chegou a materializar-se numa coabitação de muitos meses. Por isso considero a J meu ex-marido, embora não me renda pensão alimentícia. :D Orgulho-me de nunca ter havido vil metal a nos separar, unir ou macular.

Sob a égide de J deixei a adolescência, entrei na faculdade, emancipei-me, tornei-me Mulher e muito mais Humana. Por isso eternamente reputar-lhe-ei ser meu mito fundador. Orgulho-me dele, meu gigante com voz de trovão. E orgulho-me que tenha permitido-me ser parte de sua vida, e sustê-lo enquanto claudicava entre o luto por seu pai, seu divórcio e a morte de sua mãe. Orgulho-me ainda mais de ter sido capaz de dar conta de todo o seu espírito erudito acromegálico, de todos os seus 120 quilos e seu 1 metro e 95. Fui mulher suficiente para sua estatura gigante não apenas física, mas também moral. Fui mulher deste entre heróico, macho-alfa e super Ser Humano de coração pungente e imenso. Se a alguém confiaria fazer o discurso em meu funeral, seria a J, sabendo que com toda a sua eloqüência improvisar-me-ia bela e poética elegia. Órfã de pai, mãe e avô que sou, se a alguém pediria que me conduzisse ao altar, seria a J, que belíssimo ficaria, grisalho, num terno, e que me entregaria com amor paterno a quem sabe aquele que está inscrito em meu Destino. Quem sabe um dia...

Com tristeza reconheço que de J levei e a J dei meu primeiro chifre, em represália. O chifre que lhe dei, confessei-lhe desafiadoramente, explicando que apenas o fizera em retaliação. O chifre que deu-me, flagrei-lhe, ao menos em um. Namorávamos há 1 ou 2 meses, e eu debatia-me numa desesperada e enlouquecida obsessão romântica idealizada por tudo que evocava vagamente a J.

No dia do flagrante adultério sofrido que surpreendi, J disse-me que estava cansado e não sairia à noite. Conformei-me e fui depois convidada por uma colega de sala, Aline, a ir encontrá-la no fliperama Lord’s na rua Coelho Lisboa, esquina com a Cantagalo, em frente ao Shopping Sílvio Romero, no Tatuapé velho de guerra, palco de minha adolescência. Como eu estava triste de não poder encontrar meu amado, aceitei seu convite. Meia hora antes do combinado, saí, a pé, de minha casa e trilhei os caminhos que conheço ainda hoje até de olhos fechados pelas Padre Estêvão Pernet, Itapura, Tijuco Preto, Serra de Bragança, Serra de Juréia, que levam até à praça Sílvio Romero, “centro” do Tatuapé.

Na esquina desta praça, entre a Serra de Bragança e Coelho Lisboa, havia um bar temático de futebol, ao qual J já me levara e tornaria, cruelmente, a levar depois deste episódio. Nesta creio que sexta-feira do flagra, dobrei com meu comum passo apressado esta esquina, e já na Coelho Lisboa olhei, despretensiosamente, para dentro do bar. Procurava divisar à mesa na qual sentara-me, apaixonada, ao lado de J. Não costumo “olhar para os lados” nem procurar rostos enquanto ando, apressada, pela rua. Mas neste dia fugi a meu comportamento habitual e tive uma das mais desagradáveis surpresas de minha vida.

Divisei a mesa na qual sentara-me há 2 ou 3 semanas. E nela vi sentado J. Pisquei. Ele continuava lá, e via-me reciprocamente caminhando na calçada. Sentada à sua frente estava G, uma conhecida comum, assoberbante mulata cadeiruda, digna de ser madrinha de bateria, do grupo de acesso, 15 anos mais velha e escolada que eu, e ainda por cima Policial Militar feminina, pesando em músculos 20 quilos mais que eu em atonicidade.

Um milhão de virtualidades pulsaram em minhas veias catalisadas pela adrenalina que já sentia inundar-me. Sem alterar num micrômetro o compasso de minha pressa, cogitei adentrar o bar e dar um barraco daqueles, jogar bebida no rosto dos dois e virar cadeiras. Pensei em entrar no bar, ir até eles e desejar-lhes cinicamente todas as felicidades do mundo. Pensei também que talvez eu estivesse tendo uma alucinação ou ilusão oriunda de meu fresco, imenso e desmedido amor. Não, se tal fosse, eu não teria o trajeto de meu olhar interceptado pelo rubor na face ao mesmo tempo pálida e mulata de J. Por fim decidi prosseguir orgulhosamente em meu passo resoluto. Cingi-me da dignidade que prematura e injustificadamente sempre procurei ostentar. E, sobretudo, raciocinei que armar um barraco, ou chutar-lhe o pau, não serviria de nada à reiteração ampliada que pretendia para esta minha paixão. E eu não pretendia, sequer vagamente, transigir da presença de J em minha vida, por mais que eu precisasse engolir secamente meu orgulho e minha dignidade para tal.

Dados 7 passos, sabendo-me eclipsada ao olhar de J, parei e pensei em dar alguns passos atrás para furtivamente certificar-me de que eu não alucinara, mas que de fato meu amado idealizado estava sentado à mesma mesa à qual me levara, agora com outra mulher. Mas não. Parei meio segundo e prossegui. A 80 metros encontrei Aline, em frente ao Lord’s. Sem cumprimentá-la, quase a desmaiar, agarrei seu braço e disse:

- Faz um favor imenso pra mim? Vai no bar da outra esquina e olha se o J está lá com a G, por favor!

Compreendendo meu estado emocional alterado, Ela sentou-me no Lord’s e foi rapidamente cumprir o que lhe pedira. Retornou 4 longos e excruciantes minutos depois e disse-me:

- É, ele não estava no bar, mas na calçada, vi ele olhando pros lados, como se procurasse alguém. Parecia que tinha acabado de pagar a conta e... ... a G estava do lado dele...

Eu não alucinara. Foi adstringente e amarrou-me a boca tal qual pedra hume o sabor do primeiro chifre que levei, aos 17 anos, do então e até agora grande amor de minha vida. Naquela noite, ao lado de Aline, permiti-me um porre homérico de tequila. Depois desta noite, nunca mais tomei tequila, o destilado de agave mexicano, por temer sentir o gosto adstringente de adultério que seu bouquet me suscita.

Engoli a seco a tequila e o chifre desta noite. E meu amor com J durou por mais 4 anos, sem os quais tenho certeza que hoje eu não teria meia estatura do que sou. Às vezes precisamos engolir muitos sapos para poder beijar o ilusório e amado príncipe.


Legião Urbana - Eu sei


Pato Fu - Eu sei


Eric Clapton & BB King- Riding With The King


Eric Clapton & B.B. King- Come Rain Or Come Shine


Alanis Morissette - Flinch


Postagem posterior complementar: O flagrante que nunca foi

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O irmão de Hakani e o mimadinho sociopata.

O assunto desta postagem é algo muito delicado de se perceber e volátil para se analisar, mas pretendo intentá-lo, com toda a sua fragilidade. E é a partir de exemplos práticos que pretendo abordar a questão do pq algumas crianças demonstram desde cedo instintos sociopatas enquanto outras externam uma Humanidade tão profunda que faria corar a muitos octogenários. Analisarei o comportamento de duas crianças que nunca vi, das quais ouvi falar e pensei muito a respeito. Apenas para fins didáticos chamarei a um de Luís e ao outro de Rudá.

Logo no começo vai o post scriptum, ou a nota de rodapé: relevarei os possíveis determinantes genético-biológicos destas duas crianças, considerando que seu comportamento seja apenas socialmente determinado, sob o prisma já descartado da tabula rasa. Portano aproveito para já externam a consciência da vanidade de meu esforço, como o de cavar um buraco na água. Mas se fôssemos estritamente racionais não seríamos plenamente humanos. Chegaremos até aí.

A primeira frase que ouvi a respeito de Luís foi:

- Eu tenho medo desse menino, não deixo meus filhos brincarem com ele.

Isso foi dito numa sala de professores, durante uma conversa coletiva, a respeito do filho de uma diretora de escola. A seguir a professora que disse a frase acima relatou seu pq. Disse que num churrasco de confraternização viu Luís tentar seguidamente afogar outra criança, filha de uma professora entretida demais com o churrasco para preocupar-se com seu filho. Contou-nos que pulou na piscina e resgatou à vítima, que desesperadamente lutava por sua vida.

Após colocar a criança no deck, já segura, disse que virou-se para Luís e perguntou:

- O que vc estava fazendo?!

Com um brilho metálico e frio desenhando uma sombra de crueldade em seus olhos, Luís disse:

- Eu só estava ensinando ele a nadar...

A professora disse que ele arrematou essa frase com um sorriso que causou-lhe um arrepio na espinha, ao perceber que a criança de 8 anos não estava meramente de forma irrefletida brincando perigosamente com o coleguinha, mas que Luís não só estava tentando dolosamente assassiná-la como já tinha na ponta da língua seu álibi pré-fabricado. Percebeu que Luís era um sociopata, e que todos os que estivessem ao seu alcance corriam risco de vida.

Concluiu dizendo que Luís era o príncipe de sua casa, filho único, muito inteligente, fazia judô e tocava piano; estava sempre impecavelmente vestido, cheio dos brinquedos modernos, dos quais era cumulado por seus pais que muito trabalhavam, para remediar sua ausência cotidiana. Luís era cheio de coisas e vazio de valores.


Por Rudá chamarei ao irmão da famosa indiazinha suruwahá Hakani. Hakani nasceu numa reserva indígena. Com o passar do tempo, sua gemeinschaft percebeu que ela não crescia nem desenvolvia-se “normalmente” como as outras crianças. Socialmente percebido que ela era portadora de algum tipo de deficiência, a aldeia legislou que Hakani deveria ser morta, para não tornar-se um peso para sua comunidade.

Muitos criticam ou mesmo legitimam o infanticídio indígena. É compreensível que numa vida tão dura a comunidade queira, racionalmente, “livrar-se” rapidamente daqueles que não poderão “trabalhar”, mas apenas vampirizarão os parcos recursos comunitários, sem contribuir positivamente. Obviamente não compactuo, mas compreendo essa prática. Outro costume indígena é o de livrar-se dos segundos, terceiros, quartos, gêmeos. Ter múltiplos é coisa de animais. Humanos têm apenas 1 filho de cada vez, e a crença indígena é de que se alguém tiver um irmão gêmeo, nunca conseguirá formar devidamente sua personalidade e que, a existir um duplo de alguém, necessariamente um será o “gêmeo mau” e outro será o “gêmeo bom”. Para resolver esse problema, é mais fácil simplesmente assassinar aos gêmeos nascidos depois do primeiro, quantos forem.

Muitos lerão no parágrafo superior a comprovação do primitivismo das sociedades pretensamente “selvagens”. Mas não deveriam. Apenas para colocar isso em perspectiva, vai uma curiosidade antropológica: os índios brasileiros jamais batem em seus filhos. Disso sei pois tal foi relatado com surpresa pelos jesuítas que vieram à América Portuguesa catequizar aos silvícolas. Li certa vez que um jesuíta surpreendeu-se enormemente quando, ao levantar a mão para açoitar um erê indisciplinado, teve sua mão segurada no ar por um índio que sequer era parente da criança. O índio impediu que o jesuíta batesse nela e lhe explicou, provavelmente em guarani:

- Não pode bater em criança. A alma foge.

Índios não batem em guris pois essa violência pode assustar e afugentar a alma da criança, que pode escapar-lhe do corpo pelos maus-tratos. Portanto compreendam: a aldeia pode até decretar a aniquilação de uma criança. Mas jamais a agredirá, por nenhum motivo.

Quando a aldeia decretou o holocausto de Hakani seus pais deveriam ser a primeira mão a executá-la. Para furtarem-se a isto, ambos os seus genitores cometeram suicídio. Mas isto não foi suficiente para poupar a vida de Hakani, que agora órfã seria um peso comunitário ainda maior. Por conta disso seus irmãos foram encarregados da execução.

Um sepulcro foi cavado e Hakani foi enterrada viva. Rudá, seu irmão mais velho, agora o chefe da família aos 8 anos de idade, não suportou ouvir, sob a terra, o choro de sua irmã já sepultada. Num lance de inacreditável coragem e Humanidade, desenterrou Hakani, enfrentou toda a sua aldeia e disse, desconheço em qual língua:

- Ela é minha irmã e eu não deixarei que ela morra.

Rudá sabia que estava a assinar sua proscrição. Condenado ao ostracismo aos 8 anos foi banido de sua aldeia; e levando o bebê Hakani nos braços, foi obrigado a retirar-se de sua comunidade para viver sozinho, com uma lactente de saúde frágil na floresta amazônica, cheia de onças, sucuris, jibóias, cascavéis, sapos venenosos, milhares de mosquitos e muitos mais perigos que apenas posso imaginar.

Não se sabe como, Rudá conseguiu manter Hakani viva por 2 ou 3 anos. Completamente sozinho na floresta amazônica, sem nenhum auxílio, exposto às intempéries, à fome, à seca, às doenças, aos predadores. Quando Rudá percebeu que a saúde de sua irmã estava frágil demais para que ele pudesse cuidá-la, agora aos 10 ou 11 anos raciocinou que talvez os “brancos” pudessem fazer por ela o que estava além de seu alcance. Temendo a morte premente de sua amada irmã, Rudá procurou um grupo de missionários estrangeiros que estavam ali para catequizar aos silvícolas (desta vez na religião protestante, e não católica como os jesuítas, embora para os aborígines brasileiros não haja nenhuma diferença entre eles) e entregou-lhes Hakani, que ele temia estar à beira da morte.

Vi, pela televisão, a foto que esses missionários tiraram de Hakani ao recebê-la. Ela resumia-se a uma gigantesca barriga d’água. Emaciada, cadavérica, minúscula. Parecia grávida de seu parasita. E sua aparência era de quase morta, demonstrando que Rudá esperara até o último momento de desespero antes de separar-se dela. Após entregá-la, Rudá, saudável, foi reacolhido por sua comunidade, onde vive ainda hoje.

Hoje Hakani é uma cidadã americana. Foi adotada por uma família que mora no Hawaii e os médicos yankees descobriram que sua deficiência era o cretinismo, um distúrbio da tireóide contornável com medicação. E a menina que ainda bebê foi enterrada viva cresce e floresce, agradecida pela coragem de Rudá ao salvá-la, percebendo que o que todos os adultos circundantes ordenavam-lhe fazer não era Humano. Expondo sua própria vida ao perigo, enfrentando a todos que deviam dizer-lhe o que fazer, Rudá salvou a vida de sua irmã.

Como Rudá, índio que muitos rotulariam como “selvagem”, poderia ser portador de uma Humanidade muito mais exacerbada que a de Luís, o mimadinho menino de classe média, que nunca teria barriga d’água, malária, nem seria espreitado por uma onça? O que leva um indiozinho a ser gauche na vida e um Luisinho a tentar matar seu coleguinha de forma premeditada e com álibi programado?

Pq o “bárbaro” é civilizado e o “civilizado” é bárbaro?

Qual é a diferença que faz de Rudá um Humano e de Luís um mero homo sapiens sapiens?


Legião Urbana - Índios

sábado, 11 de dezembro de 2010

O torcicolo psicossomático

“Psicossomático”, reconheço, é uma “palavra difícil”, conjugando dois radicais. Desenterremo-os. Psico refere-se à esfera mental, psicológica, do ser humano, oposto ao que é orgânico, físico. Somático provém do verbo somatizar que significa: transformar em sintoma, manifestar fisicamente um distúrbio ou enfermidade. Portanto psicossomático traduz-se ao vernáculo por: apresentar sintomas físicos de aflições psicológicas.

Conheci essa palavra no cursinho. A psicóloga, apresentado as bases de sua profissão relatou que numa visita a um manicômio reparara que lá ninguém sofria de queda de cabelo, oleosidade na pele, dores nas costas, pele ressecada. Enquanto que a maioria das pessoas somatizam suas dores psicológicas no corpo físico, quem, por algum motivo, tem esse mecanismo bloqueado acaba enlouquecendo.

Que ninguém confunda dores psicossomáticas com dores imaginárias. A dor é física e tão real quanto o tormento psicológico. Dói de ter que tomar remédio. Dói de não se encontrar posição confortável para dormir. A mim doía de não conseguir virar o pescoço. Chegaremos até lá.

Algumas pessoas choram, aberta e desesperadamente seu sofrimento. Outras o guardam, recalcado, mudo, civilizado, taciturno e seco de lágrimas. São essas as pessoas que ou somatizam suas dores ou acabam enlouquecendo.

Dei-me conta disso há pouco tempo quando, pelo telefone, aos prantos no luto desesperado pela morte recente de minha canis lupus angelicus Jade, ouvi de minha madrinha:

- Mas nem pelo seu avô vc chorou assim!

Minha madrinha é umas das 2 ou 3 pessoas que podem-me dizer impunemente algo deste tipo, sem receber no instante seguinte um indicador a meio centímetro de seu nariz. Naquela noite repassei longamente esta frase, e percebi que era acurada: enquanto eu permitira-me chorar convulsivamente por meus cachorros Jade e Lucca, eu envergara uma máscara de cera inexpressiva após o falecimento de meu avô.

Perguntei-me o pq disso. Pq a meus cães eu pranteara abertamente, mas não ao meu avô? Sabia que meu amor por ele não era um verniz barato que descasca à primeira chuva, e nem uma maquiagem familiar calculada para me permitir acesso à sua pródiga benevolência. Era um amor profundo, atávico, real. Mas eu não chorara. Até chorara, mas não tanto assim. Não tanto quanto ele merecia e minha dor exigia.

Percebi então que ainda restava meu precioso e amado morto por chorar, e que se eu não o chorara, era pq ainda guardava, necrosadas, essas lágrimas não vertidas dentro de mim. Mas como bombeá-las, do fundo da minha psique, e finalmente drená-las? Pelo ladrão? Pela caixa de gordura? Pela fossa sanitária? Como sanear um edema na alma?

Meu subconsciente passou muitos dias processando este questionamento até que manifestou-se, sem que eu me desse conta à primeira vista, no dia 15 de novembro; uma segunda-feira, feriado devido à Proclamação da República no Brasil em 1889. Neste dia acordei com um terrível torcicolo, o pior que eu já tive, que me incomoda continuamente até agora, quase 1 mês depois. Não conseguia mexer o pescoço em nenhuma direção. Repuxava-me o lado direito, e doíam-me também o ombro, a omoplata, o braço direito, dedos indicadores e anular. Pensei: deve ser tendinite, ou dormi de mau jeito; e esperei que a dor passasse ao longo do dia. Não cedeu. Ao cair da noite, finalmente tomei um antiinflamatório para tentar aplacá-la.

Na manhã seguinte consegui um encaixe no ortopedista e desfrutei justamente minha terceira falta médica no Estado. Dr. Olavo Narkevitz receitou-me Tandrilax, pediu exames de raio-X e encaminhou-me à fisioterapia. Pretendia dar-me alguns dias de afastamento, mas expliquei-lhe que apenas poderia gozar de um. Senti-me quase intimidada e pensei em dizer “Não precisa de tudo isso”, como se eu não fosse digna de tanto cuidado. Mas como até dirigir tornara-se um tormento a cada esquina, e sem poder dobrar o pescoço eu poderia até causar um acidente, engajei-me nas sessões de fisioterapia.

Fui submetida a um aparelho que dava “choquinhos” nas áreas doloridas, por 20 minutos, e a seguir 5 minutos de creio que ultrassom. Logo na primeira sessão a fisioterapeuta portando a ponteira do segundo aparelho, tentando manobrá-la no encontro entre meu ombro e pescoço disse furtivamente:

- Nossa, acho que nunca vi um músculo tão tenso...

No momento, superficialmente, tomei esta frase com uma banal curiosidade. Mas depois principiei a desconfiar que aquela tensão poderia ser minha somatização enlutada, sempre presente, a dificultar-me conciliar o sono diuturnamente. Em outros termos, que a dor não chorada pela perda de meu avô jazia materializada ali, no meu ombro direito. Mas, por mais que eu tentasse, alongasse, o aparelho cutucasse, e a fisioterapeuta insistisse, eu não conseguia relaxar aquele músculo.

Até a décima terceira sessão. Nessa vez fui atendida por outra fisioterapeuta, que não me conhecia. Aprontou o aparelho e perguntou-me onde era o incômodo. Descrevi-lhe e apontei-lhe em meu corpo. Por algum motivo ela não colocou os eletrodos nos músculos costumeiros, mas exatamente sobre minha coluna cervical. Ligou o aparelho e eu quase pulei. Conti-me até que ela saiu deixando-me só na baia terapêutica. E assim que entrefechou a porta sanfonada de plástico, começaram a rolar-me sobre a face lágrimas profusas e antes que eu me perguntasse pq veio-me na lembrança a cena em que despedi-me de meu avô.

Conti-me para não soluçar e despertar a atenção de ninguém. Mas finalmente sentia, fisicamente, ser cutucada a nódoa na qual eu represara todo o meu luto contido. Meu avô não fôra embora. Sua ausência estava ali, aguilhoando meu pescoço, maneteando minha mão direita, fazendo silêncio em todo lugar. Pelos 20 minutos ao longo dos quais os eletrodos tentaram despertar o nervo que relaxaria aquele músculo quase mumificado, parte da tensão física da insegurança, desproteção e falta de referência à qual a ausência de meu avô haviam me lançado principiaram a dissolver-se, tal qual uma colherada de açúcar em uma xícara de chá.

Obviamente uma dor contida por 4 anos não esvai-se rapidamente. Mas enquanto, naquele mesmo dia eu escrevia a postagem “De como dei a extrema-unção ao meu avô”, sentia ceder, lentamente, milímetro a milímetro, a tensão em meu ombro. E neste exato instante do agora, enquanto livro-me do peso de ter de guardar apenas em minhas memórias este insight sobre meu torcicolo psicossomático, percebo que mais um milímetro cede meu ombro e com ele, cicatriza mais um tanto a dor pela perda de meu avô.

domingo, 5 de dezembro de 2010

De como dei a extrema-unção ao meu avô

Creio que nunca tão dolorosamente parirei outro texto. Esta memória, a que preferi tanto tempo me furtar, flutua longamente em meu subconsciente tal qual o coacervado primevo da sopa nutritiva nas nunca publicadas “memórias de um átomo” de João da Ega.

Ao reassistir aos “Maias” recentemente, finalmente desvendei o motivo de minha fascinação por esta história trágica familiar: a pungente presença do sábio Afonso da Maia, dignamente interpretado por Walmor Chagas. O personagem do patriarca do Ramalhete ombreia-se ficcionalmente com Rei Lear. O notável que, agora idoso, vê-se diante do dilema de não ter ninguém à altura que o suceda, pois os tempos são outros. Talvez mais diversos ou adversos no século XIX que no XXI.

A pungente memória que pretendo aqui expurgar refere-se aos últimos momentos de lucidez de meu adorado avô Vicente. Mais que um pai, o capitão e depois major da Polícia Rodoviária Estadual Vicente Novais da Silva, foi todo o meu mundo. O demiurgo de meus parâmetros de honradez, responsabilidade, hombridade, retidão. Muitos outros textos merece e receberá meu Morzinho, como o chamava, nunca por “avô”. Ele não era meu “avô”, ele era meu Moreco, assim mesmo, denotando um relacionamento muito íntimo, mas que seja enfaticamente esclarecido, em nenhum aspecto margeando qualquer mancha de sexualidade. Eu e meu Papica, que nesta vida foi meu avô, temos uma ligação amorosa espiritual, que transcende ligações sangüíneas ou carnais.

Mais certeza disso tenho pelo fato de que por uma dessas felizes “coincidências” da vida, eu e ele, nesta encarnação, nascemos no mesmo dia. Quando eu nasci, ele passou seu aniversário daquele ano na maternidade e recebeu, ao final do dia, entre seus braços, empacotadinha e com cara de joelho, a esta que agora escreve este texto de tristes lembranças. Em 1982, eu fui seu presente de aniversário.


Poucos são os justos entre as nações que recebem a dádiva de uma descendência nascida exatamente no dia de seu aniversário. E apenas posso imaginar a emoção imprescritível de alguém que recebe simbolicamente alguém de seu sangue a título de presente de aniversário. Lembro de um caso célebre: John Lennon recebeu seu precioso Sean e dedicou-se integralmente a ele tal qual meu... foge-me qualquer adjetivo que faça-lhe Justiça..., avô dedicou-se não só a mim, mas às 3 netas filhas de sua tresloucada filha. E além de mim, minha irmã mais velha Cristhiane também nasceu um dia antes de nosso aniversário. Meu avô foi duplamente presenteado com dois "coincidentes" presentes de aniversário. Ele o merecia. Merece.

Talvez por nosso natalício comum, sempre desfrutamos de uma afinidade intuitiva, que transcendia palavras, e mais do que isso, a possibilidade de uma efetiva amizade entre uma criança e um aposentado. Meu avô sempre foi, mais do que meu porto seguro, que a ressaca pode levar, meu alicerce em arco romano, que resiste ao teste dos milênios.

O derradeiro momento em que isso aflorou foi quando percebi que, nesta vida, eu seria a agraciada com seu último momento de lucidez. Há muitos anos meu avô lutava contra um câncer na próstata. Metástico, no início de 2007 já sabíamos que era incurável. Submeteu-se meu avô a longas e dolorosas sessões de hemodiálise. Ao final de janeiro, o médico foi sincero conosco e disse que dado o avançado estado de seu câncer, a hemodiálise era um paliativo que apenas prolongaria o sofrimento físico dele e nossa tortura psicológica. Nos apresentava a ortotanásia, a forma adeqüada, kasher, de se morrer.

Consternado, apresentou a possibilidade de suspendermos a hemodiálise e levá-lo para casa, para que ele pudesse passar seus últimos momentos de lucidez na intimidade familiar. Foi decidido pelos “adultos” (aos 24 anos eu não estava incluída entre eles) que suspenderíamos os paliativos. Sabíamos que, sem a hemodiálise, lentamente a uréia não expelida envenenaria seu corpo e ele desfaleceria, lentamente, num coma progressivo.

Esquematizamo-nos para dar plantões à sua cabeceira. Na noite de um certo domingo, era meu o turno. Estávamos assistindo à TV, ele na cama adaptada, eu no catre ao lado. Saturado de morfina, era de se esperar que ele nada fizesse além de ver TV, comer e dormir. Não naquela derradeira noite.

Principiou a agitar-se e a emitir ruídos aflitos. Pulei, agarrei suas mãos e fitei os amados olhos em seu rosto profeticamente inchado e sem cor. Piscava convulsivamente e murmurava coisas indistintas, demonstrando desconforto.

Segurando firmemente suas mãos, pondo meu rosto a poucos centímetros do seu, disse-lhe:

- O senhor está com dor ou com medo?

Queria saber se sua dor era do corpo ou da alma.

Balbuciou, mas o compreendi: “Com medo”.

Senti a primeira lágrima cair-me do lábio superior. Percebi que encontrava-me diante de um daqueles momentos-chave da vida, irrepetíveis, inadiáveis, implanejáveis. Antes que rolasse pelo meu rosto a segunda lágrima, que já se prenunciava, espocou-me na mente a lembrança de uma frase daquelas que nunca se espera escutar:

- Foi aqui que eu morri.

Ouvira isso da boca de uma amiga de faculdade, ao apontar a piscina de sua casa. Explicou a seguir: “Quando eu tinha 3 anos, caí na piscina. Quando me acharam, eu já estava roxa, sem sinais vitais. Meu pai, que é gastroenterologista, me ressuscitou após vários minutos. Tenho certeza de que se meu pai não fosse médico eu não estaria viva.”

Eu não sou médica, e sabia que aos males físicos de meu avô eu nada poderia fazer. Mas às aflições de sua alma eu poderia dar algum bálsamo, embalsamando-as. Naquele momento, enquanto desenhava-se, pendente, a segunda lágrima no canto de meu olho direito, compreendi o motivo de toda a minha Teologia. Formei-me em História, e sempre me interessei por Religião, meus estudos superiores e todo o meu hebraico foram paitrocinados por este que agora encontrava-se moribundo diante de mim.

E eu quase ouvia o Narrador Onisciente decretando a respeito desta cena: “Foi ali que ele morreu”. Eu não O ouvia tal qual não divisava a chuva de neutrinos nem tangia a matéria escura a nos trespassar. Mas mesmo não sendo palpável, nada disso é menos real. Algumas coisas são intuídas, ou mesmo teoricamente postuladas, e não precisam de nenhuma comprovação mensurável para serem dignas de crédito. Agradeço a Deus esta certeza, que faz vibrar minh'alma.

Enquanto a lágrima principiou a rolar sobre a minha face, repassei todo o meu Latim, que só agora eu compreendia porquê aprendera: para saber exatamente o que dizer naquele momento crucial. E mais do que isso, enquanto escolhia as palavras exatas, lembrei-me que tinha diante de mim um ex-seminarista, que reconheceria imediatamente o que eu estava a fazer ao dizer aquela sentença que hesitantemente articulava. Não cabia dirigir-me, naquela circunstância, a meu avô por senhor, e sim, intimamente, por “você”.

Um leigo teria dito: "eu te amo", começado a rezar um Pai Nosso, afagado-lhe ou apenas chorado. Mas minha Teologia nos servia para dizer algo muito melhor, eficiente e próprio para este momento para o qual nunca jamais alguém estará suficientemente preparado: despedir-se de um espírito-irmão. O que vc diria, leitor, nesta circunstância?

Quando decidi-me pela exata formulação da frase, questionei-me se tal sentença cabia, pois para mim meu avô sempre fora um santo, de comportamento irretocável, digno dos mais altos elogios e honrarias. Diante de mim, meu avô jamais fizera absolutamente nada que eu pudesse criticar. De minha perspectiva ele era tamin, imaculado, dele apenas posso dar testemunhos exemplares. Mas lembrei-me de que a vida de meu avô excedia ao breve recorte final que eu testemunhara, e que ao longo de sua juventude e imaturidade ele poderia, tal qual eu, ter feito coisas pouco recomendáveis. Lembrei-me ainda, embora isso pareça impossível neste curto lapso temporal que ora narro, que já haviam-me dito que antes de eu nascer meu avô fumava e tinha “amigos do bar”. E que eu gostava de nutrir o acalanto inverídico de que, tocado por minha simples existência, ele cessara de conceder-se estes deslizes. Por fim, decidi-me de que a frase, em sua integralidade, apesar de minha perspectiva hagiográfica, cabia.


Enquanto escorria derradeiramente a segunda lágrima pelo canto de meu lábio superior, eu disse segurando ainda mais fortemente suas mãos, com a voz profundamente embargada, mas ainda assim dilacerantemente resoluta:

- Você se arrepende de todos os seus pecados?

Ele imediatamente reconheceu que nesta frase eu, nesta vida sua neta, estava a dispensar-lhe a extrema-unção, o derradeiro sacramento, e tentando, dentro das minhas capacidades, expurgá-lo de erros e pecados, possibilitando-lhe, quiçá, seu green card para alguma “área VIP” celestial, que ele com certeza merecia.

Esse é o tipo de frase que não pode ser dita duas vezes, e que nunca deve ser pronunciada antes da hora, sua função é proporcionar um alívio instantâneo, e não uma agonia prolongada de devoto, mas naquele átimo percebi que meu avô testemunhava seus últimos momentos de compreensão, e que este era o instante fatídico para o qual toda a minha e toda a sua Teologia nos haviam encaminhado.

Meu avô olhou para o alto e murmurou algo que não pude compreender, mas que me aliviou enormemente (pela cadência creio que o disse num latim que excedia ao meu parco estudo). Em poucos segundos começou a ter uma convulsão, e gritei por ajuda dos demais familiares. Lembro-me do semblante desesperado de meu tio Renê ao acorrer, escorregando, devido à urgência, no quarto, e de como as veias saltavam em seus braços enquanto acudíamos com toda a nossa firmeza ao nosso pai. A seguir meu avô foi levado, de ambulância, para o hospital, de onde nunca retornaria. Recitei-lhe e ainda recito-lhe o Kaddish, a Vicente ben Euclides, da parte de Fernanda bat Noach.

Foi assim, com o coração mais-do-que partido, embora eu não seja sacerdote, que dei, creio que corretamente, a extrema-unção e despedi-me de meu tudo nesta vida. Sinto ainda hoje, todos os dias, sua ausência. Mais do que meu pai, meu avô nesta minha vida foi toda a minha pátria.


O Teatro Mágico - O Anjo Mais Velho

The Beatles – Help

Jota Quest - Mais Uma Vez

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Causos escolares – o sem festa de aniversário

Quando, leitor, é o seu aniversário?

Essa é uma das respostas mais rápidas e certeiras que qualquer um acima de 7 anos sabe responder com segurança e presteza. E este dado, curiosamente, em nossa sociedade, de certa forma é atachado à própria identidade do indivíduo, tendo que ser citado inúmeras vezes em todas as mais variadas situações em escolas, postos de saúde, na Justiça Eleitoral, na delegacia de polícia e afins.

Pois é, costumamos, como se diz em inglês “take for granted” que todos têm direito, anualmente, à celebração de seu aniversário, mesmo que simbólica por conta da pobreza. Pois é, nem todos. Isso aprendi boquifechada na FEBEM.

Certo dia, ao final do ano, levei revistas e cartolinas para fazer cartazes com os internos da Fundação CASA na qual trabalhava. Nesta sala do ensino fundamental, franqueei as revistas para que os alunos as folheassem à cata de algum assunto que despertasse sua atenção.

Um deles, de posse de uma Superinteressante com uma matéria cheia de gráficos lindos sobre Astronomia e Astrologia, apontando as folhas disse:

- Vamos fazer um cartaz sobre o céu e as estrelas?

Percebi que para eles, presos num internato à beira da estrada na zona rural, as estrelas abundantes no Céu noturno representavam um suspiro de liberdade, sonho, poesia. Uma certa intuição de que a vida prosseguia, resoluta e livre, além das grades.

Gostei da idéia. Disse então que os demais principiassem a procurar nas outras revistas palavras e imagens referentes a estrelas e, pq não, aos signos do zodíaco.

Como forma de diversificar e verticalizar o assunto, levantei com eles a questão dos signos zodiacais.

- Meu signo é Capricórnio, e o de vcs?

Eram 12 alunos. 11 disseram seus respectivos signos. O um que falta, Fernando, lombrosiano, analfabeto, permaneceu mudo sem interagir com a atividade. Sentei-me ao seu lado e perguntei:

- Fala, qual é o seu signo?

Atalhou num tom mau-humorado: - Não sei.

Abrindo um sorriso como se eu estivesse diante de uma criança que desconhece uma informação simples, retruquei-lhe:

- Ora, eu conheço bastante de signos. É só vc me dizer em que dia vc faz aniversário que eu te digo qual é o seu signo!

Não entendi os segundos de silêncio que se seguiram. Ao cabo deste estranhamento, Fernando, traficante de renome, olhou-me diretamente nos olhos de forma fugidia, assustada, de como quem confessa um pecado há muito cometido e sussurrou, soslaiando para assegurar-se de que mais ninguém ouvia:

- ...sabe... ...é que... ...eu não sei... ...quando eu faço aniversário...

Constri meus lábios entre os dentes tal qual fazem os centenários na ausência da dentadura. Permaneci atônita e reticentemente emudecida, sem saber se eu falava mais alguma coisa ou mais nada. Como percebi o constrangimento de meu xará apenas no nome e em mais nenhuma circunstância além de nossa espécie e nacionalidade comuns, e seu aceno em não querer prolongar o assunto, levantei-me e afastei-me dele, tentando colocar em stand by o meu choque social.

Terminados a aula e o cartaz, encaminhei-me diretamente ao funcionário responsável pela papelada dos “menores”, sr. M, de cabelos imaculadamente brancos. Mais-que-pálida, relatei-lhe o ocorrido e terminei com um:

- O senhor poderia olhar na papelada dele e me dizer qual é a data de seu aniversário?

Sr. M. contraiu seus lábios tal qual eu meia hora antes. Disse a olhar para suas gavetas transbordantes:

- Pois é, eu também não tenho a data do aniversário dele, na verdade, só tenho seu R.G. expedido quando da sua prisão, com esta data de registro, com o nome que ele declarou, de pai e mãe desconhecidos. Ele foi preso sem documentos... Na verdade, provavelmente, nunca os teve...

Arqueei da forma mais ampla possível minhas sobrancelhas num lance de dúvida e inacreditável certeza. Sequer o Estado tinha certeza do nome, idade, data de nascimento, de Fernando, além dele próprio. Embora ele sequer fosse depositário de uma identidade, isso em nenhum momento tolheu o Estado de puni-lo, sem sequer dar-se ao trabalho de ir atrás de sua documentação original, se é que ela existia.

Caro leitor, passe brevemente em suas lembranças todas as vezes em que vc soprou velinhas, sempre na mesma data. Fernando nunca soprou e provavelmente nunca soprará nenhuma vela em nenhum bolo de aniversário. Vc consegue agora, talvez, vê-lo por um outro prisma, quiçá mais... humano?


Como exigir "normalidade", pelo nosso parâmetro, de quem nunca teve uma vida "normal", de acordo com "nosso" próprio parâmetro... ?

terça-feira, 30 de novembro de 2010

De como perdi meu primeiro emprego

Recentemente vi-me numa conversa entre amigos pós-universitários sobre nossos primeiros empregos. Um fôra office boy, outro atendente numa loja, uma terceira, secretária de uma dentista. Uma quarta comentou, reflexivamente, que seu primeiro trabalho remunerado dera-se apenas depois de graduada. Outro, que nunca tivera assim, propriamente, um emprego, apenas mesadas familiares e bolsas de estudo governamentais.


Percebi que dentre todos eu fôra a mais jovem a exercer atividade trabalhista regular e remunerada. Normalmente crê-se, ao menos no Brasil que quanto mais é postergado o momento de ingresso no eito, mais, em acepção espanhola, experto e preparado é entregue ao mercado de trabalho o cidadão. Discordo em todos os graus. Creio que quanto mais tardio o contato com o “trabalho”, menos disposto estará o cidadão em efetivamente “trabalhar”. Como se diz em minha terra, é de menino que se torce o pepino.


E que não distorçam-me lendo nisto apologia ao trabalho infantil. Mesmo que o próprio conceito de “infância” seja questionável, pronuncio-me aqui apenas a respeito de pessoas legalmente cônscias, excedidas a 14 anos.


O quê são os 14 anos? No Brasil, a idade mínima para o consentimento sexual. Certa vez expliquei a meus alunos:


- Se uma menina de 14 anos “transa” com seu namorado de 13 anos ela pode ser enquadrada como delinqüente no artigo de “estupro de vulnerável”, condenada e mandada para a FEBEM – Fundação CASA, cumprindo de 6 meses a 3 anos de “medida sócio-educativa de internação”.


Embora improvável, isto seria perfeitamente legal. Atualmente no Brasil a legislação prevê que a idade mínima para o trabalho são os 16 anos. Quando eu mesma era adolescente, eram 14 anos e foi por conta disso que aos 15 anos pude ter meu primeiro emprego.


Vi uma faixa no McDonald’s da avenida Anhanhia Mello, da janela do ônibus: “Estamos recebendo currículos”. Fui com meus colegas do colégio Chico e Romeu entregá-los e participar da entrevista. Como sou meio “outspoken”, o que seria meio-traduzido por algo entre faladeira e articulada, fui selecionada e eles não.


Para qquer menina brasileira de classe média-baixa é um orgulho ser recrutada para trabalhar no McDonald’s, um ícone multinacional.


Eu trabalharia no “restaurante” Anália Franco Drive, que seria brevemente inaugurado em frente ao canteiro de obras do então futuro Shopping Anália Franco, no canto milionário do Tatuapé, a 2 quilômetros da vila operária em que eu residia em casa alugada.


Meu treinamento deu-se na loja à rua Serra de Bragança, onde eu já comera muitíssimas vezes, próxima à praça Sílvio Romero, coração do Tatuapé. Lá aprendi o ofício. Orgulhosamente uniformizada, decorei até a temperatura em que cada hambúrguer deveria ser grelhado. Selecionada com o perfil de atendente “de salão”, e bilíngüe, lidava com os clientes e pouco trabalhei diretamente na cozinha.


Ao final do treinamento, fomos avaliados e recebemos notas de 0 a 100. Essas notas foram divulgadas numa reunião. Sem que eu me surpreendesse, obtive a maior nota, 97. Recebi então um adesivo de alguém segurando uma bandeja em meu crachá e um pin, ou bottom, exclusivo, para atachar ao meu uniforme.


Na semana seguinte inauguramos o AFD e havia um espaço em branco na parede assinalado pela placa “funcionário do mês”. Ora, sem modéstia, obviamente concluí que em breve estaria lá minha foto num sorriso exultante, afinal eu fora a que mais exemplarmente concluíra o treinamento.


Rsrsrs... Como eu era boba com 15 anos.


Cheguei num dia seguinte e vi, no espaço vazio, a foto de uma loirinha bonitinha num sorriso tolo assinalada como “Joyce”. Joyce fôra a segunda colocada na avaliação, com 96 pontos. Tinha eu 15 anos e senti coçar-me os brios, o que urgi em comentar em voz alta, publicamente, no refeitório:


- Como assim, a Joyce é a “funcionária do mês”?! Fui eu que recebi o pin! Fui eu a com a melhor nota! Por quê ela? Por que ela é loira? Por que ela é simpática? Por que ela é bonita?


Explicaram-se depois à boca pequena:


- É porque ela é do Drive. Já me disseram que é comum que os funcionários que atendem ao Drive Thru sejam privilegiados.


Compreendi então que no mercado de trabalho muito mais importante que a capacidade eram as coligações políticas: o lugar certo, o sorriso certo, a saudação certa na hora certa. E que mesmo que meu trabalho fosse melhor, o Drive Thru era politicamente mais importante. E também que a loirice de Joyce era mais plástica que minha latinidade.


Eu tinha 15 anos e não engoli isso a seco, não sem lutar. Por isso sei exatamente o motivo pelo qual fui rapidamente demitida. Na semana seguinte estava eu recolhendo o lixo do salão externo. Vindo do salão interno, outro atendente meu colega abordou-me para perguntar:


- Vc viu o Orlando?


Orlando era nosso sub-gerente, subordinado ao todo-todo meu xará Fernando. Não contive, em minha adolescência, minha língua coçando numa insinuação maldosa, amarga e pretensamente espirituosa:


- Não vi o Orlando. Deve estar por aí puxando o saco do Fernando.


Meu colega atendente retornou à cozinha e eu reenfoquei-me no meu serviço. 3 minutos depois vi descer pela escada do andar superior não só o sub-chefe Orlando, mas também o mega-chefe-xará Fernando. E enquanto desciam as escadas, dirigiram-se um após o outro certo olhar fulminante.


Como fôra "um certo olhar" e não "um olhar certeiro", torturou-me por 3 dias a dúvida: “Será que eles ouviram, do andar de cima, aquela frase despretensiosa, e cria eu, sem conseqüências, que eu soltara sem pensar, especialmente que mais alguém ouviria?


No terceiro dia tive a resposta. Ouviram-me.


Chamou-me outra sub-chefe, oxigenada. E a outra atendente da minha “turma”, Karina SS. Disse entre robótica e contrita: “Então, este restaurante não teve o movimento esperado e vamos ter que dispensar vcs duas.”


Fiquei completamente chocada. Achei que talvez eu fosse levar um pito, ser advertida, chamada para uma conversa. Nunca, sumariamente, demitida. Então caiu a ficha de uma frase que eu já ouvira muitas vezes: que eu tinha uma “língua de trapo” ou “de sapo”.


Até então eu achava que a veracidade, autenticidade e sinceridade eram virtudes. Quando, por conta delas, perdi meu primeiro emprego, percebi que estes podem ser defeitos, dependendo do mundo em que se vive. No McDonald’s, com certeza veracidade, autenticidade e sinceridade são defeitos e a superficialidade, cegueira e mudez são virtudes. E não só nesta multinacional, mas em qquer empresa que aglomere muitas pessoas, especialmente mulheres.


Ganhava eu então, em 1998, R$1,46 a hora. O que devia dar algo como US$ 0,60 por hora. Pensem o que quiserem, orgulhava-me eu de ganhar, aos 15 anos, com o suor do meu rosto, meu dinheirinho para minhas coisas adolescentes. CD’s, sessões de cinema, revistas, roupas, refrigerantes.


Assim, com minha primeira demissão, comecei a aprender a ser hipócrita e a não dizer abertamente o que penso. E também que, mais importante que a efetiva capacidade de trabalho, eram as relações pessoais. Quisera eu já ter-me conformado e aprendido tudo isso, mas minha língua cotidianamente coça, e não consigo controlá-la, comprometendo-me socialmente, ainda hoje, com isso. Triste.


Não que eu tenha a língua solta, mas que a sinceridade seja, em nosso mundo, defeito.


Da palavra não dita és senhor. Da palavra dita és escravo” - Abraham Benson.


Portanto, se os leitores querem um conselho que seguramente não vão seguir, mas sobre o qual deveriam ao menos pensar: aprendam a controlar a própria língua e a não falar tudo o quê pensam. E, especificamente, além do falar, publicar na Internet. Isto torna imprescritível cada pequeno deslize. Todos devemos preocupar-nos com isso.


Ditado popular: Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para ouvirmos o dobro do que falamos.


Outro: em boca fechada não entra mosca. Mais um: quem fala o quê quer ouve o quê não quer. Feqüentemente negligenciamos tolamente a sabedoria que os "ditos populares" nos legam.


A Internet ecoará pela Eternidade. Permita Deus. Um dia meus netos agradecerão ao Dr. Orkut e aos Srs. Facebook a oportunidade de conhecer-me, em toda a minha inconseqüente, adolescente, espontânea, irrefletida, específica, latino-americana à paulista, autenticidade avacinada. :) Ou nos amaldiçoarão, caso eu mesma macule meu nome. Como disse recentemente Bernie Madoff: o sobrenome de sua descendência foi maculado. Permita minha recentemente nascida prudência que eu não incorra neste pesar.

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