sábado, 31 de dezembro de 2011

Aprenda a se valorizar

A dinâmica da interação social é um das habilidades mais necessárias à vida humana e das mais difíceis de se compreender. Para de certa forma disciplinar e harmonizar essas relações criou-se a disciplina chamada "Etiqueta". Porém suas regras são desconhecidas pela maioria das pessoas ou mesmo redundantemente ignoradas pelos que as conhecem.

Especialmente nas relações amorosas, nem sempre as devidas regras de Etiqueta, tão necessárias, são seguidas. E muitas pessoas pelas quais temos carinho, amizade ou consideração às vezes se comportam conosco de uma forma que, num primeiro momento, parece inexplicável e a respeito da qual gostamos de nos enganar e iludir.


A forma mais comum de pecado contra a etiqueta e as boas relações entre duas pessoas é o marcar um compromisso e não comparecer, ato conhecido popularmente como "dar furo" ou "dar bolo", o que é um grande vacilo, pois além de a pessoa assumir um compromisso e não dar as caras, ela ainda deixa a outra pessoa esperando, à toa, as vezes sozinha, às vezes por horas, quase sempre com as veias bombando de adrenalina na antecipação do encontro prometido, e ansiosamente esperado.


Antigamente esses "desencontros" eram muito mais comuns. Não existiam telefones celulares, não havia como avisar sobre um imprevisto de última hora, e era bastante corriqueiro a pessoa levar bolo e apenas dias depois descobrir que seu "date" tinha sofrido um acidente ou perdido o último ônibus. Quando somos mais jovens até toleramos esses vacilos de nossos amigos, que enquanto adolescentes são "quebrados" e dependem do transporte público. Antigamente, antes da existência dos GPS's e mapas on-line, até compreendíamos esses desencontros pois podíamos marcar encontro num lugar e a pessoa até poderia ir e não encontrar o local exato, voltando frustrada para casa.


Hoje, com o avanço da tecnologia os vacilões que dão bolo nos outros estão ficando cada vez com menor facilidade de inventar desculpas esfarrapadas para sua falta de consideração e de responsabilidade com o compromisso assumido.


Porém, as mulheres especialmente, sempre tentam consigo encontrar alguma explicação do pq "levaram bolo", tentando encontrar alguma justificativa para o furão mesmo que o próprio não se manifeste. Gostamos de pensar "ah, ele fez isso mas não foi por querer, tenho certeza que deve ter acontecido alguma coisa" e nos apressamos a perdoar, especialmente quando temos carinho além de uma simples amizade em relação à pessoa.


Mulheres costumam não se valorizar, se rebaixar, correm ansiosamente atrás de seus interesses românticos tentando com sua dedicação conseguir a atenção e o amor que tão desesperadamente procuram. Essa postura, a da mulher carente e grudenta que simplesmente não consegue ver a realidade nua diante de seus olhos, é desvendada no livro e posterior filme "He's just not that into you", ou "Ele simplesmente não estão tão a fim assim de vc".


Não precisei ler o livro nem ver o filme para compreender a mensagem simples e cristalina que ele tem a nos dar: se um cara não age da forma como vcs combinaram, se ele marca e não aparece, se ele diz que vai ligar e não liga, por mais que as mulheres procurem milhares de subterfúgios para não ver a realidade, ela é muito simples: ele simplesmente não estão tão a fim de vc como vc está a fim dele. Vc está aí preocupada pensando nele e ele simplesmente está se lixando para vc. Cagando e andando. Não está nem aí. Não tem a menor consideração por vc, seja como amiga, seja como parceira romântica.


Chega uma hora na vida de toda mulher em que ela tem que decidir se vai continuar a perder seu tempo com moleques que se comportam eternamente como adolescentes ou se ela vai passar a se valorizar e só "dar bola", "trela" ou "mole" para quem realmente merece seu tempo e sua atenção.


A diferença básica entre um moleque e um homem é a responsabilidade. O Homem, com H maiúsculo, tem Palavra, com P maiúsculo. O Homem fala e faz, é "firmeza". O moleque fala, fala, fala e na hora... amarela, refuga, titubeia, que nem um frangote, é "moleza". Sua palavra não é reta, ela faz curva, a depender da direção do vento e do "humor" do momento.


Não estou dizendo que as mulheres devem ser carrascas na base do vacilou, rodou. De forma nenhuma, devemos dar uma segunda chance. Não uma terceira. A regra é simples.


Vacilo número um - Vc marca e a pessoa não aparece. Tudo bem, pode ter acontecido alguma coisa. Vc fez sua parte, se a pessoa não apareceu, o problema é dela.


Vacilo número dois - Vc marca e a pessoa não aparece, de novo. Aí, sinceramente, não "aconteceu alguma coisa". Foi falta de respeito mesmo. Agora o problema não é mais da pessoa, é seu, pois vc deu uma segunda chance para uma pessoa que não merecia. Aprenda a lição.


Vacilo número três - Sinceramente, vc é uma pessoa que não tem amor próprio, não só o vacilão não tem consideração com vc, como vc própria não se respeita. Caso vc marque de novo com essa pessoa, sinceramente, vc é uma idiota que procura relacionamentos disfuncionais que só te trarão infelicidade. Tome vergonha na cara. Ou pare de reclamar.


Se alguém vacila com vc uma vez, tudo bem dê uma segunda chance. Se a mesma pessoa vacila consecutivamente com vc uma segunda vez, vc precisa tomar uma atitude. Pois se uma coisa acontece uma vez pode nunca se repetir. Agora se uma coisa acontece duas vezes, seguramente ela se repetirá uma terceira, e se vc der chance para isso a culpada é vc.


Aprenda a se valorizar, não perca seu tempo com os caras errados. E para saber a diferença, é muito simples: o cara que vale a pena te valoriza, é "firmeza", diz que vai e vai, diz que liga e liga. O cara errado é "moleza": diz que vai e não vai, diz que liga e não liga. E se ele age assim, não perca seu tempo sofrendo nem pensando a respeito dele: ele simplesmente não está a fim de vc, pois se estivesse teria consideração e respeito por vc e pela palavra empenhada. Vc passará melhor sem ele.


He's just not that into you

domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma análise das Leis bíblicas sobre sexo, casamento, divórcio e estupro

Muita comoção e indignação internacionais foram despertadas pelo caso da afegã conhecida singelamente por "Gulnaz". Aos 19 anos ela foi estuprada pelo marido de sua prima. Calou-se sobre a violência, mas não pôde escondê-la quando os sinais da gravidez resultante começaram a aparecer. De acordo com a Sharia, lei religiosa islâmica, ela foi condenada a 12 anos de prisão por praticar "sexo fora do casamento". Foi-lhe facultada a reaquisição de sua liberdade caso ela restabelecesse sua honra da única forma possível perante as leis religiosas tribais: casando-se com seu estuprador.

Uma situação absurdamente surreal: além de ter sido vítima de uma violação foi considerada, por ter sido estuprada, culpada de um crime. Cuja "retificação" consistiria em ela ser obrigada a reiteradamente realizar o ato sexual com seu algoz, submetendo-se a seu domínio matrimonial. Sua absolvição consistiria em ela tornar a fazer sexo com seu estuprador, mas agora sob a chancela da lei. Nem Salvador Dalí nem De Chirico seriam capazes de pintar um quadro com tintas tão disparatadas.

Muitos apressadamente condenarão o "atraso" das leis religiosas vigentes no Afeganistão. Não pretendo lhes tirar a devida razão, apenas dar uma perspectiva mais ampla sobre esse tema: as leis religiosas que versam sobre sexo, divórcio, estupro e relações sexuais "antes do casamento". E para essa análise partirei das Leis religiosas vistas como sagradas no Ocidente, presentes no texto-base da Cultura Judaico-cristã Ocidental: a Bíblia, considerada por cristãos e judeus a "palavra de Deus". Mais especificamente, me debruçarei sobre o Antigo Testamento (Tanach). E nele, a Lei de Moisés (Torah), também chamada de Pentateuco.


Um debate religioso que sempre dá ibope é a virtual proibição bíblica ao "sexo antes do casamento". Não existe proibição bíblica ao sexo antes do casamento simplesmente pq, biblicamente, não existe sexo antes do casamento. O sexo é o próprio casamento. O que chancela a união entre esposos é a efetivação do ato sexual entre eles. Ainda hoje, tanto pelas leis religiosas como civis, mesmo que duas pessoas casem-se perante a lei, a união reconhecida em cartório só se realiza de fato na "consumação do casamento", que se dá no intercurso sexual.


Aí entra a pergunta: e se um casal faz sexo sem ser casado? É claro que a Torah legisla sobre essa situação, e a respeito dela preconiza:


Êxodo 22:

15 Se alguém seduzir uma virgem solteira e se deitar com ela, pagará o dote e se casará com ela. 16 Se o pai dela não quiser dá-la, o sedutor pagará em dinheiro, conforme o DOTE das virgens.

Essa Lei atesta claramente que "sexo antes do casamento" (entre pessoas solteiras e desimpedidas), por si só, não quebra nenhum mandamento, pois se quebrasse, haveria alguma punição ao casal pelo "pecado" cometido. E nenhuma punição é prescrita nem à jovem "seduzida" nem ao “namorado” sedutor. Apenas a multa pecuniária ao "proprietário da honra da virgem" (seu pai) e a indicação, NÃO OBRIGAÇÃO, de que o casal se una num matrimônio definitivo. Caso seja do desejo do pai da moça.


O que escapa a muitos é que na sociedade veterotestamentária não existiam pessoas "livres e desimpedidas" como hoje o concebemos. Nossa perspectiva burguesa de liberdade pessoal, auto-determinação, individualismo e a "busca da felicidade" inexistiam. As pessoas não subsistiam "sozinhas", apenas como membros de sua família estendida, sua beit'av. E especialmente as mulheres não eram donas de seu próprio corpo, destino e vontades. Mulheres, especialmente as virgens, tinham alto valor monetário. O patriarca era dono de seus filhos, senhor sobre a vida e a morte de todos sob sua autoridade clãnica. Vejamos alguns preceitos que ilustram isso:


Êxodo 21:

7 Se alguém vender a filha como escrava, esta não sairá como saem os escravos. 8 Se ela desagradar ao patrão, a quem estava destinada, este deixará que a resgatem; não poderá vendê-la a estrangeiros, usando de fraude para com ela. 9 Se o patrão destinar a escrava para seu filho, este a tratará conforme o direito das filhas. 10 Se o patrão tomar uma nova mulher, ele não privará a primeira de comida, roupa e direitos conjugais. 11 Se ele não lhe der essas três coisas, ela pode ir embora sem pagar nada.


Claramente, o pai tem direito a vender sua filha como escrava, visto que ela, ou sua virgindade, é uma propriedade com valor em dinheiro. Ao ser vendida em casamento, a filha passa a ter um "patrão", um "novo dono". Mas ainda assim persiste depositária de certos direitos, como a preservação de sua honra e possibilidade de divórcio (irrevogável). Se partir do marido a iniciativa da separação, claro.


Deuteronômio 24:

1 Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade. 2 Tendo saído de sua casa, se ela se casar com outro, 3 e também este se divorciar dela e lhe entregar nas mãos um documento de divórcio e a deixar ir embora em liberdade, ou se o segundo marido morrer, 4 então o primeiro marido, que se havia divorciado dela, não poderá casar-se outra vez com ela, pois estará contaminada: seria um ato abominável diante de Javé. Você não deve tornar culpada de pecado a terra que Javé seu Deus vai lhe dar como herança.


Deuteronômio 22:

13 Se um homem se casa com uma mulher e começa a detestá-la depois de ter tido relações com ela, 14 acusando-a de atos vergonhosos e difamando-a publicamente, dizendo: ‘Casei-me com esta mulher mas, quando me aproximei dela, descobri que não era virgem’, 15 o pai e a mãe da jovem pegarão a prova da virgindade dela e levarão a prova aos anciãos da cidade para que julguem o caso. 16 Então o pai da jovem dirá aos anciãos: ‘Dei minha filha como esposa a este homem, mas ele a detesta, 17 e a está acusando de atos vergonhosos, dizendo que minha filha não era virgem. Mas aqui está a prova da virgindade da minha filha!’ E estenderá o lençol diante dos anciãos da cidade. 18 Os anciãos da cidade pegarão o homem, mandarão castigá-lo 19 e o multarão em cem moedas de prata, que serão entregues ao pai da jovem, por ter sido difamada publicamente uma virgem de Israel. Além disso, ela continuará sendo mulher dele, e o marido não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida.

20 Se a denúncia for verdadeira, isto é, se não acharem a prova da virgindade da moça, 21 levarão a jovem até à porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão até que morra, pois ela cometeu uma infâmia em Israel, desonrando a casa do seu pai. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio.


Nesse excerto de Deuteronômio 22 muitos vêem que a mulher, obrigatoriamente, deve ser virgem para se casar. Isso não é verdade. O que esse texto condena é a fraude de se "vender gato por lebre": um homem se casar enganado achando que a noiva é virgem quando não é (e haver pago por um dote mediante fraude). Pq posso afirmar que não é obrigatório que a noiva seja virgem para se casar? Pq há uma Lei que determina que uma única mulher, em todo o Israel, obrigatoriamente deve ser virgem ao se casar: a esposa do Sumo Sacerdote.


Levítico 21:

10 O sumo sacerdote, escolhido entre seus irmãos, sobre cuja cabeça foi derramado o óleo da unção e foi consagrado com a investidura das vestes sagradas, não andará despenteado nem esfarrapado. 11 Não se aproximará de nenhum cadáver, porque não deverá tornar-se impuro, nem mesmo por seu pai ou por sua mãe; 12 não sairá do santuário e não profanará o santuário do seu Deus, porque está consagrado com o óleo da unção do seu Deus. Eu sou Javé. 13 Ele tomará por esposa uma virgem; 14 não se casará com viúva ou com mulher repudiada, desonrada ou prostituta, mas se casará com uma virgem do seu povo, 15 para não profanar seus filhos no meio do povo, porque eu sou Javé, que o santifico».


O sumo sacerdote, necessariamente um levita cohen, e apenas ele, deve obrigatoriamente escolher "uma virgem do seu povo" para se casar. Essa Lei não se aplica ao "cidadão comum" e nem aos demais sacerdotes, vejamos:


Levítico 21:

1 Javé falou a Moisés: «Diga aos sacerdotes, filhos de Aarão: O sacerdote não se contaminará com o cadáver de um parente, 2 a não ser que se trate de parente muito chegado: mãe, pai, filho, filha, irmão. 3 Também por sua irmã solteira que vive com ele; por causa dela poderá expor-se à impureza. (...)

7 Não se casarão com prostituta ou mulher desonrada, ou ainda mulher que tenha sido repudiada por seu marido, porque o sacerdote está consagrado ao seu Deus.


Claramente compreendemos que enquanto o "sacerdote comum" não pode se casar com uma ex-prostituta, ou desonrada, ou repudiada, ao sumo sacerdote, e apenas a ele, além dessas interdições, é acrescida a necessidade da virgindade da noiva. Subjaz o raciocínio: e o "cidadão comum", pode ser casar com uma mulher solteira ex-prostituta, desonrada, repudiada ou que não seja mais virgem? Com certeza. Se ela não for sua parente nem sua ex-mulher (havendo se casado com outro, mesmo que seja viúva).


Caso uma moça que perdeu a virgindade ficasse proibida de se casar, seguramente o versículo de Ex 22:16 "Se o pai dela não quiser dá-la, o sedutor pagará em dinheiro, conforme o dote das virgens" seria acrescido do apêndice: "e não poderá mais ser dada em casamento", ou "e estará contaminada para sempre", ou "e ficará na casa de seu pai pelo resto de seus dias" ou um simples "e não poderá mais ser dada em casamento a outro".


Mas nada disso, e nada nesse sentido, está escrito ou pode sequer ser derivado a partir de outras passagens. Peço encarecidamente a todos os leitores que encontrem qualquer determinação nesse sentido que a compartilhem aqui. Ficarei muito grata pois meu propósito não é desviar ninguém do correto cumprimento da Lei. Meu objetivo é esclarecer preceitos interpretados parcial ou erroneamente. E renovar, sob uma perspectiva histórica e modernizante, qual é o verdadeiro propósito do Criador ao nos legar as instruções (mitzvot) da Torah.


É necessário dizer que na cultura bíblica não existe a figura da "mulher independente". Na sociedade hebraica da Antiguidade toda mulher estava submetida a uma autoridade masculina. Sendo solteira, seu pai. Sendo casada, seu marido. Tanto que a palavra, e qualquer compromisso assumido, por uma mulher não vale nada até que seja chancelado pela autoridade a que está submetida. Vejamos:


Números 30:

2 Moisés falou aos chefes das tribos de Israel: «Assim ordena Javé: 3 Quando um homem fizer um voto a Javé ou se comprometer com alguma coisa sob juramento, não deverá faltar à palavra. Cumpra o que prometeu.

4 Quando uma mulher, ainda solteira e morando com o pai, fizer um voto ou se obrigar a uma promessa, 5 se o pai, conhecendo o voto ou a promessa que ela fez, nada lhe disser, então os votos dela são válidos e a promessa ficará de pé. 6 Contudo, se o pai, no dia em que tomou conhecimento, fez oposição à promessa, nenhum dos votos e promessas que ela fez serão válidos. Javé a dispensa, porque o pai dela desaprovou.

7 Se ela se casar comprometida pelo voto ou pela promessa que fez sem pensar, 8 e se o marido, ao tomar conhecimento, nada lhe disser no dia em que for informado, os votos e promessas que ela fez serão válidos. 9 Contudo, no dia em que o marido tomar conhecimento, se ele fizer oposição, o voto que ela fez ficará nulo, e a promessa que fez sem pensar não terá efeito. Javé os dispensará.

10 O voto de uma viúva ou repudiada e todas as promessas que fizer serão válidos.

11 Quando uma mulher faz um voto na casa do seu marido, ou se compromete com alguma coisa sob juramento, 12 se o marido, ao saber do fato, nada lhe diz e não lhe faz oposição, então os votos dela são válidos e a promessa que fez ficará de pé. 13 Contudo, se o marido, ao ser informado, os anula, então os votos e promessas dela ficam inválidos. Seu marido os desaprovou e Javé a dispensa.

14 O marido pode confirmar ou anular qualquer voto ou juramento de penitência feito pela sua mulher. 15 Contudo, se o marido nada lhe diz até o dia seguinte, então confirma todos os votos e promessas que a obrigam: ele os confirma com o silêncio que guardou ao ser informado. 16 Todavia, se foi informado e os anula mais tarde, ele próprio levará o peso da culpa de sua mulher».


Apenas o voto de uma mulher "desobrigada", viúva ou repudiada (divorciada), é válido sem a chancela de uma autoridade masculina. Daí podemos derivar que nenhuma mulher "solteira" (que ainda vive na casa paterna) é livre e dona de si. Enquanto solteira ela pertence a seu pai. Enquanto casada pertence a seu marido. E deve ser dito, que pela lei do levirato, caso ela não tenha dado ao menos um filho ao falecido marido, deverá se casar com o cunhado (Dt 25:5-10).


Portanto, pela perspectiva bíblica, o único jeito de uma mulher ganhar o que poderíamos chamar de liberdade e "autoridade sobre si e sua própria palavra" é submeter-se à determinação do casamento paterno, e posteriormente ver-se livre do marido e das obrigações que deve à família deste. Após isso o pai não poderá revendê-la uma segunda vez "usando de fraude para com ela" e seu futuro marido, repassando-a a um terceiro como se virgem fosse.


Essa passagem também diz, numa interpretação especular, que nenhuma moça solteira pode prometer a si mesma em casamento. Qualquer compromisso assumido por uma moça solteira deve ser aprovado por seu pai. Por isso ele não é obrigado a entregá-la em casamento mesmo que ela mesma entregue, por "amor", após ser "seduzida", sua virgindade ao parceiro de sua escolha. Biblicamente, a mulher não é dona de sua própria virgindade. Este bem, com valor em dinheiro, pertence ao seu pai. E caso ele veja avariado seu patrimônio, deve receber como indenização o "dote das virgens", mesmo que ele não permita que sua filha se case com quem a "seduziu" e "tirou sua virgindade".


Mas o leitor pode estar se perguntando o que toda essa análise tem a ver com o caso de Gulnaz. Ocorre que a Torah também tem Leis concernentes ao estupro. E que ecoam os preceitos da sharia adotada pelos muçulmanos. Leiam com seus próprios olhos:


Deuteronômio 22:

23 Se houver uma jovem prometida a um homem, e um outro tiver relações com ela na cidade, 24 vocês levarão os dois à porta da cidade e os apedrejarão até que morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade, e o homem por ter violentado a mulher do seu próximo. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio. 25 Contudo, se o homem encontrou a jovem no campo, a violentou e teve relações com ela, morrerá somente o homem que teve relações com ela; 26 não faça nada à jovem, porque ela não tem pecado que mereça a morte. É como o caso do homem que ataca seu próximo e o mata: 27 ele a encontrou no campo e a jovem pode ter gritado, mas não havia quem a socorresse.

28 Se um homem encontra uma jovem que não está prometida em casamento e a agarra e tem relações com ela e é pego em flagrante, 29 o homem que teve relações com ela dará ao pai da jovem cinqüenta moedas de prata, e ela ficará sendo sua mulher. Uma vez que a violentou, não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida.


Nisso deve ser apontado um princípio muito claro: uma mulher casada ou noiva que é estuprada apenas se livra da condenação à morte por adultério caso ela tenha sido violada "no campo", fora dos muros da cidade; pois ela "pode ter gritado". Se a violação se deu na cidade, ela deve ser apedrejada até a morte como adúltera. O leitor moderno nisso lerá um absurdo insensato. E o é, em nossa sociedade moderna, cujas casas contam com algum nível de isolamento acústico. Não em vilarejos da Antiguidade, com tendas de pele e casas construídas com barro no método do pau-a-pique. O conceito de "privacidade" nasceu com o aburguesamento das interações sociais, e recintos domésticos, que só se deu no século XIX. Até então o conceito de "invasão de privacidade" inexistia pois a própria privacidade individual era inexistente. Caso uma mulher gritasse, toda a vila seguramente a ouviria.


Podemos nos perguntar pq a moça que se entregou voluntariamente em Dt 22:16 não é obrigada a contrair matrimônio enquanto a jovem violada em Dt 22:29 é obrigada a se casar com seu algoz. A diferença entre essas passagens é o "pego em flagrante", a exposição pública da violação, que desonra abertamente à mulher e à sua família diante de toda a comunidade. Após tal vexame nenhum outro homem se disporia a casar-se com ela e por isso quem "a violentou, não poderá mandá-la embora".


Por essa passagem é com pesar que devo reconhecer: para fins de estupro, os mandamentos bíblicos não diferem em nada da sharia. Se nossa sociedade ocidental fosse julgar o caso de Gulnaz por suas próprias leis religiosas, ela seria igualmente obrigada a desposar seu estuprador para "limpar sua honra". Isso estabelecido, torna necessária uma ampliação de nossa visão sobre "as leis do outros" e uma mudança de perspectiva sobre a forma como analisamos os textos que consideramos sagrados em nossa própria religião.


O profeta Muhammad (abençoado seja seu nome, e de todos os que pregaram contra a idolatria) bebeu na fonte da Torah para elaborar a religião muçulmana e sob muitos aspectos do direito feminino a sharia pode ser considerada "mais avançada" do que nas Leis de Moisés. Por exemplo, pela Lei mosaica as filhas não têm direito à herança paterna. Pelas leis corãnicas elas têm, uma porção menor que a dos irmãos homens, mas ainda são titulares de alguns direitos patrimoniais na casa de seu pai. Deve ser acrescido que detalhe fundamental na biografia do fundador do Islã é seu primeiro casamento com Khadija, mulher mais velha, viúva, rica, e dona de si. Seguramente este fator influenciou determinantemente, de forma positiva, a construção da imagem feminina na religião islâmica.


Na Torah há apenas um caso de jovem solteira estuprada: Dina, única filha de Jacó / Israel citada pelo nome, ou da qual se tem notícia. E é uma referência melancólica.


Gênesis 34:

1 Dina, filha de Lia e Jacó, saiu para ver as mulheres do país. 2 Siquém, o filho do heveu Hemor, príncipe do país, tendo-a visto, tomou-a, dormiu com ela e a violentou. 3 Contudo, sentiu-se atraído por Dina, filha de Jacó, apaixonou-se por ela e procurou cativá-la. 4 Então Siquém falou a seu pai Hemor: «Consegue-me essa jovem para ser minha mulher». 5 Jacó soube que Siquém tinha desonrado sua filha Dina; mas, como seus filhos estavam no campo com o rebanho, esperou em silêncio até que eles voltassem.

6 Hemor, pai de Siquém, foi falar com Jacó. 7 Quando os filhos de Jacó voltaram do campo e souberam da notícia, ficaram indignados e furiosos, pois era uma infâmia em Israel que Siquém tivesse dormido com a filha de Jacó, coisa que não se faz. 8 Hemor falou com eles: «Meu filho Siquém se apaixonou pela filha de vocês. Peço que vocês a dêem para ele como esposa. (...)

25 No terceiro dia, quando os homens estavam convalescendo, Simeão e Levi, filhos de Jacó e irmãos de Dina, tomaram cada um a sua espada, entraram sem oposição na cidade e mataram todos os homens. 26 Passaram a fio de espada Hemor e seu filho Siquém, tomaram Dina da casa de Siquém, e partiram. 27 Os filhos de Jacó atacaram os feridos e pilharam a cidade, porque haviam desonrado sua irmã. 28 E deles pegaram as ovelhas, bois e jumentos, tudo o que havia na cidade e no campo. 29 Roubaram-lhes todos os bens, todas as crianças, e pilharam o que havia nas casas.

30 Jacó disse a Simeão e Levi: «Vocês me arruinaram, tornando-me odioso para os cananeus e ferezeus que habitam o país. Somos poucos: se eles se reunirem e nos atacarem, me matarão e acabarão comigo e com minha família». 31 Mas eles responderam: «Por acaso nossa irmã pode ser tratada como uma prostituta?»


Essa é a última passagem que cita Dina. Ela simplesmente desaparece dos relatos bíblicos depois disso. Isso demonstra numa primeira análise o seguinte: não existe mulher judia sem honra. A mulher judia que é "desonrada" (ao perder sua virgindade, mesmo que por estupro) "some", "desaparece", "deixa de existir", torna-se "invisível".


Numa segunda leitura percebemos como essa passagem se liga a Dt 22:25. Em ambas as situações a jovem tinha "saído de casa" sem a tutela de seu guardião. E nisso a Torah desaconselha o livre "ir e vir" feminino. Hoje isso pode parecer absurdo. E é. Em nossa sociedade moderna. Porém mais uma vez devemos fugir ao anacronismo e analisar a Lei munidos da perspectiva histórica.


Hoje a mulher é vista como tão depositária de "direitos" e "dignidade" quanto os homens. Não no "Antigo Testamento", no qual as mulheres são pouco mais que escravas. Enquanto solteiras pertencem a seu pai; após casadas a seu marido.


Atualmente, caso um homem veja uma mulher solteira livremente andando por aí e deseje fazer sexo com ela, ele se sentirá socialmente obrigado a cortejá-la, a convencê-la “pela lábia” a aquiescer, por livre vontade. E só fará sexo com ela caso ela aceda positivamente às suas investidas. Há 3 mil anos os valores morais e a etiqueta dos relacionamentos eram muito diferentes. Caso um homem encontrasse uma mulher "dando sopa por aí", não teria escrúpulos em violá-la, tomá-la para si, subjugá-la usando de violência. Tanto quanto se ele visse uma cabra ou vaca, sem dono, "dando sopa por aí" não titubearia em dizer "achado não é roubado" e agregar o animal ao seu plantel. Embora isso seja claramente proibido. Por isso as mulheres eram resguardadas, mantidas em confinamento no ambiente doméstico, e ocultadas por véus ao se exporem publicamente.


Pergunta final: e o que a Torah tem a dizer sobre a mulher solteira que não vive mais na casa paterna nem é mais sustentada por ele, mas que se provém por meios próprios?


A resposta é cristalinamente simples: nada. Na perspectiva bíblica é impensável a existência de uma "mulher independente" que se sustenta e é dona de si. Porém, como a Torah é perfeita, podemos inferir princípios que limitam a interferência paterna na vida de suas filhas. Cada palavra da Lei foi milimetricamente calculada e posicionada, nenhum caractere está lá sem motivo, gratuitamente. De cada Lei devemos extrair não apenas o que está explicitado em letras negras, mas também o que não está escrito, o que é calado, nas partes em branco. A isso, o ler o negativo da Bíblia, chamo de análise especular, por espelho. Cada Lei que diz uma coisa também afirma uma série de outras coisas, sobre as quais se cala. E isso está expresso na conclusão da passagem sobre a chancela masculina aos compromissos assumidos por uma mulher:


Números 30:

17 São essas as ordens que Javé deu a Moisés para o marido e a mulher, e para o pai e a filha, quando esta ainda vive com seu pai.


A expressão-chave aí é: "quando esta ainda vive com seu pai". Caso uma moça solteira que não resida na casa paterna ainda devesse satisfações para seu genitor a parte "quando esta ainda vive com seu pai" simplesmente inexistiria e não haveria como eu afirmar que a Lei nada diz sobre mulheres que moram sozinhas. A Lei fala sobre elas (calando-se a seu respeito) ao especificar que apenas quem ainda está sob a tutela e sustento paterno permanece submetida a sua autoridade.


À guisa de conclusão: devemos analisar muito criteriosamente nossas próprias leis religiosas, que o Ocidente acatou com o sua base moral, antes de nos arrogarmos o direito de considerar "atrasadas" as leis "dos outros". A Lei Judaica é um manancial riquíssimo de significados que podem ser lidos de múltiplas formas, caleidoscópicas, e que muitas vezes dizem uma coisa esclarecendo outras. Muitas lições estão escondidas de forma quase subliminar.


Devemos ter muito cuidado e respeito ao manejar e interpretar a Lei. Tão errado quanto violar um preceito da Torah é, pretensiosamente, adicionar a ela mandamentos que não existem.


Dt 28: 14 Não se desvie para a direita nem para a esquerda, em tudo o que eu hoje lhes ordeno, indo atrás de outros deuses para servi-los.


Dt 4:

2 Não acrescentem nada ao que eu lhes ordeno, nem retirem coisa nenhuma. Observem os mandamentos de Javé seu Deus do modo como eu lhes ordeno.


Nina Simone - Ain't got no... I got life


Alanis Morissette - Princes Familiar


Joss Stone - Super Duper Love / Digging on me

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Deus como Washington Olivetto

Não sou publicitária nem acompanho com especial atenção a carreira de Washington Olivetto. E este texto não se refere a nenhuma conquista deste premiado profissional da propaganda. E muito menos compará-lo ao Criador. Neste texto uso um episódio da biografia deste famoso publicitário para tentar fazer uma analogia com a relação entre D' e os homens.

O "grande público" conhece Washington Olivetto a partir do mais divulgado episódio de sua biografia: seu seqüestro. Por sessenta dias Olivetto esteve trancado num cubículo sem janelas nem comunicação com o mundo exterior. Isolado, incomunicável, como que numa dimensão oculta. Envelopado como que num Universo paralelo, engolido por um buraco negro. Afastado de todo convívio humano, como um eremita, ermitão. Ou alguém "abduzido" por alienígenas.

Olivetto não foi libertado após pagamento de resgate nem através de investigações policiais. E é a maneira pela qual salvou-se que considero análoga à forma de como D' está para nós, e o "método" pelo qual se dá a comunicação (parcial) entre a esfera humana e a divina.

Enclausurado num cubículo, Olivetto utilizou-se dos únicos recursos à sua disposição: seus músculos e sua voz. Esmurrou as paredes para fazer barulho. Gritou. Implorou por ajuda na esperança de que, através das paredes, do outro lado do muro, houvesse alguém que o ouvisse, que o ajudasse.

Quantas vezes eu e vc, leitor, não ouvimos barulhos, vozes, e até gritos através das paredes, erigidas cada vez mais finas? E quantas vezes vc foi verificar se, por trás daquele barulho, havia alguém pedindo por ajuda? Eu, jamais. Em prol da "boa convivência com os vizinhos" e o "não se intrometer na vida alheia", embora cotidianamente eu ouça criaturas atrás das paredes, prefiro sempre crer que estes sons são oriundos de uma briga de casal, uma criança birrenta fazendo escândalo, ou alguém arrastando móveis.

Apenas imagino a aflição de OIlivetto ao pensar que, através da parede, seus apelos poderiam estar sendo motivo de reclamação entre os vizinhos, incomodados com os ruídos indistintos e abafados. Imagino-o em suas centenas de tentativas desperadas. Seus punhos doloridos de bater infrutiferamente na parede, dia após dia. Sua garganta rouca, gasta de tanto gritar. Por 60 dias, obstinadamente, ele não desistiu de lutar por sua vida e dar seu melhor no pouco que estava a seu alcance. Tentando não enlouquecer e manter a esperança.

Sua perseverança, aliada à Providência Divina, foi fundamental para seu resgate e libertação. O "imponderável" conspirou a favor da vida de Olivetto. Do outro lado da parede alguém o ouviu. E, para além de ouvi-lo, estranhou os barulhos que não cessavam. Havia algo de estranho. O detalhe fundamental para o desfecho feliz e surpreendente desta história é que esta vizinha era a estudante de medicina Aline Dota, proprietária de um estetoscópio. O estetoscópio é um instrumento normalmente utilizado por médicos para auscultar o coração e os pulmões de seus pacientes. Extremamente sensível, ele amplia os abafados sons do funcionamento dos órgãos humanos, os tornando audíveis e analisáveis.

Intrigada com os barulhos que vinham do cômodo na casa contígua, Aline Dota colocou seu estetoscópio contra a parede. E ouviu o apelo desesperado da vítima no cativeiro "Estou preso aqui há 60 dias. Chame a polícia e as rádios. Pode dizer que sou o publicitário Washington Olivetto". Ato contínuo, ela chamou a polícia.

Sua vida estava salva. Através da comunicação entre incomunicáveis, possibilitada pelo instrumento médico providencialmente colocado nas mãos de uma vizinha preocupada o suficiente com o bem-estar alheio para se questionar se aqueles barulhos não eram os de alguém necessitando ajuda. E que teve a iniciativa de fazer alguma coisa a respeito. Coincidência?

Sinceramente, qual é chance de, do outro lado da parede de um cativeiro de um sequestrado, haver alguém na posse de um estetoscópio? E que, além disso, teria a genial sacada de perveter seu uso primário, e ressemantizando a função do estetoscópio, usá-lo para ouvir através das paredes? Creio que seja uma possibilidade estatisticamente muito baixa.

Esta analogia, da comunicação entre incomunicáveis, em planos distintos, através de sinais aparentemente incompreensíveis, que creio que desenhe uma imagem que ilustra como D' se comunica (ou não) conosco. D' não habita nosso plano, nem poderia. Nenhum aspecto essencial de D' está "a descoberto", exposto, visível. Podem ser citados os seguintes princípios bíblicos como demonstração: não podemos ver a face de Deus, pronunciar seu nome, conhecer sua essência, sondar seus desígnios. Apenas ouvir sua voz.

Claro que D' não está preso. Quem está preso, à matéria, somos nós. Utilizando essa imagem do cativeiro de Washington Olivetto, creio que D' está para nós assim como Olivetto estava para a estudante de medicina. Tentando, o máximo possível, se comunicar, esperando que do outro lado da parede alguém o ouvisse. D' está batendo, fazendo barulhos, tentado estabelecer uma relação conosco. A maioria de nós, absorta na corriqueira banalidade do cotidiano, não está nem aí para os barulhos, a princípio indecifráveis, que escuta.

Porém um ou outro está de posse de seu estetoscópio simbólico, que é o uso da razão, aliada à fé, e presta atenção aos sussurros. A partir disso, do se utilizar a razão como instrumento para o engrandecimento de nosso conhecimento de D', podemos passar a ouvi-lo, baixinho, abafado, reverberando através duma barreira instransponível, que não podemos derrubar nem vencer. Não podemos ver sua face, saber muito sobre o que existe "do outro lado", nem tocá-lo. Mas é possível estabelecer algum tipo de comunicação com Ele. É possível ouvi-lo.

D' está batendo. Pode ser à sua porta, do outro lado da parede, ou sussurando baixinho no seu coração.

Talvez esteja na hora de vc parar, apurar seus ouvidos, focar sua lente, e prestar atenção. Não precisa de estetoscópio, basta humildade, boa vontade e o desejo sincero de evoluir, de aprender. Quando vc parar para prestar atenção nas mensagens ocultas que D' nos envia, todos os dias, seguramente vc passará a compreender melhor não só a D' como a si e a sua missão nesse plano terreno.


Knock, knock. Neo.

Sequestro de Olivetto, por Marcos Dvoskin e Paulo Moreira Leite, 11/02/02

Ressurreição espiritual


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Visita à "Tabacaria" de Fernando Pessoa

Antes de mais nada, quem escreveu "Tabacaria" foi Fernando Pessoa?

Essa pergunta traz muitos mais questionamentos do que os comuns. Normalmente esta dúvida seria acerca de uma questão envolvendo plágio, porém esta palavra não pode ser jamais aplicada ao genial, único e autêntico Pessoa. Este poeta lirou não apenas em si mesmo, mas em outras vidas, com outros nomes.

Fernando Pessoa é o poeta (que se utiliza) dos heterônimos. Essa palavra significa simplesmente "outros nomes", mas esse recurso estilístico não deve ser confundido com o pseudônimo (falso nome). O pseudônimo é uma espécie de "nome fantasia" que muitos autores usam para deixar resguardada sua identidade.

Fernando Pessoa não usa pseudônimos. Ele assina suas próprias poesias, não busca o anonimato. E além da lírica que assina com seu próprio nome, produziu lírica que assinou com outros nomes, sem resguardar seu próprio. Fernando Pessoa não é apenas Fernando Pessoa. É também Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e muitos outros. E esses nomes não são seus pseudônimos, mas seus heterônimos.

São também Fernando Pessoa seus heterônimos? Por muitas décadas não se soube. O próprio Pessoa não ajudou muito a esclarecer a dúvida. E por conta disso o Espiritismo Kardecista viu nele um psicógrafo, um médium tal qual Chico Xavier que escrevia obras que não eram suas, mas "sopradas" por espíritos desencarnados. Pessoa jamais autorizou ou desautorizou tal alegação. Talvez ele mesmo não soubesse se era médium. Consta que, por exemplo, escrevia como Álvaro de Campos quando "sentia um impulso indefinível para escrever". Seria esse impulso interno ou oriundo de algum tipo de influência externa, espiritual, de outra personalidade? Ou seria a própria personalidade de Pessoa a fragmentar-se, espalhar-se por outros nomes, e vida virtuais inventadas pelo poeta?

Pessoa não sabia, e nem nós seus leitores o sabíamos. Até que a crítica e a análise literária contemporâneas comprovaram por análises estilísticas e estatísticas que, sim, era Pessoa que falava, com seu estilo indisfarçável, através de seus outros eus.

E é apenas por conta dos recentes trabalhos de análise literária que escrevi "Fernando Pessoa via Álvaro de Campos" e não "Álvaro de Campos via Fernando Pessoa" pois tal ordenamento diria que o autor do poema é o Álvaro e não o Fernando. Na sentença "Fernando Pessoa via Álvaro de Campos" está dito que o autor é, ao fim e ao cabo, Fernando Pessoa.

Fernando foi Pessoas, no plural. Poeta de vida corriqueira, sem grandes aventuras novelísticas, inventou para si outros nomes, personalidades e vidas. O poeta não cabia dentro de si. Seu lirismo transborda a aparência e personalidade corriqueira das coisas, e pessoas. Transcende sua própria pessoa, virando pessoas. Muito já ponderei sobre os prós e contras de haver nascido no Brasil. Dentre os benefícios que aos poucos vou-me dando conta devo adicionar o compreender Fernando Pessoa em sua plenitude, em minha língua materna. O português é intrincadíssimo. Uma das mais belas, ricas e complexas línguas do mundo.

Uma vez estabelecido que foi o próprio Fernando Pessoa que escreveu "Tabacaria", o analisemos.

Este poema mudou minha visão sobre a vida. Hoje, depois de lê-lo, não sei como consegui trilhar meu caminho até aqui sem o conhecer. Ou melhor, sei. O trilhava trôpega (não que agora tropece menos, mas estou algo mais lúcida). Nesta poesia está tudo. Tudo o que pecisamos saber. O apanágio para a dor da existência. Uma chave interpretativa que abre as portas da compreensão. Até então eu não achava que nenhuma arte, poesia ou texto sagrado pudesse exprimir a ingrafável questão existencial básica: a dúvida primordial do sentido e propósito da vida. Pessoa não nos dá nenhuma resposta. Mas como é bela sua expressão do inefável!

"Não sou nada.(...)À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." "Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada." "Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um,"

Consciência única e vária do "Eu". Pessoa é sublime pq percebe em sua individualidade a alteridade, a multiplicidade do mundo. Percebe o si nos outros. Vê a si mesmo em outréns. Ato impossível aos medíocres, e aos absortos na vida. É uma questão de perspectiva. Apenas quem apeia-se de si mesmo adquire a consciência da transpessoalidade. Eu não sou apenas eu. Sou apenas uma figura emblemática similar a outros "cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu". Minha humanidade, meus sonhos, minhas dúvidas existenciais não são só minhas: afligem toda Humanidade.

Pessoa externa sua consciência transpessoal de que não apenas ele se faz essas perguntas, que não apenas ele é inteligente e "genial". Reconhece-se apenas mais um dentre uma miríade de humanos que se consideram "Gênios", como ele. E a dúvida/certeza de que não basta ser gênio para se destacar.

"Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?"(...) "O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez."

"Tabacaria" é uma poesia sobre um "deitar de olhar novo" que ressignifica o que é comum. A mais trivial das banalidades: a vista que o poeta tem da rua defronte a sua janela. E desta rua Pessoa extrai o sentimento do mundo. Percebe ao mesmo tempo a realdiade e a irrealidade da existência, talvez falsa, da Tabacaria defronte. Do lado de dentro, a Tabacaria não é real, apenas sonho. Uma virtualidade que pode nunca se realizar.

Sonho de um gênio banal, que por mais genial que seja ou se considere, não há de "ganhar o mundo", em nenhum sentido. O mundo não é para os gênios. O mundo é de quem nasce com o ímpeto de o conquistar. Essência adversa (exterior) em relação ao poeta, cuja luz é interna, rouca e tão louca quanto a dos Napoleões nos manicômios.

"Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas"

Pessoa sabe que sua ânsia por reconhecimento é tão vã quanto o esperar ao alpendre de uma porta inexistente. Sabe que, tenha ou não gênio, o julgamento recairá para depois de sua morte. Morreu sem saber sua real estatura. Talvez. Diz ter falhado em tudo. Diz não ser nada.

"E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."

Pessoa ecoa a multitude e vacuidade concomitantes no ser desperto. E que é apenas no vazio de dar-se um passo fora, ou atrás, de si que se pode ver "com nitidez absoluta" e que se fica lúcido "como se estivesse para morrer" e "não tivesse mais irmandade com as coisas" ao invocar-se como espírito alheio "a mim mesmo e não encontro nada". O poeta é um degredado, a quem tudo é estrangeiro. algo onírico, e irreal.

A poesia não nos oferece respostas. Pessoa não se encontra nesses versos. Vê-se num átimo além de si, e percebe-se preso. Ao quarto, à janela, ao vício da Tabacaria. Tudo se esvairá, até o planeta. E até a lírica será reescrita, reciclada, daqui a milhares de anos, numa outra língua, por outros seres, num outro planeta. Sempre igual, estúpido, inútil e real.

O cigarro, comprado na Tabacaria, onde não se compra só tabaco, é um símbolo, uma imagem, desta vida que se nos apresenta como real, que fumamos tão rapidamente e que some tão sem propósito nem finalidade quanto a fumaça, no ar. Inexistente, mas ainda real.

Para Fernando Pessoa a vida é como um vício, e ele se vê entre a lealdade ao "viver" (o ir à Tabacaria) e seu medo da vida (de sair do quarto), ou sua constatação de que o "viver" é irreal, e tudo é sonho. Mas a vida o puxa pra fora de si. Esteves sem metafísica e o dono da Tabacaria o chamam ao banal. Mas ao real?

A vida se esvai como fumaça enquanto o poeta pondera as virtualidades confortáveis e burguesas pelas quais nunca optará. O poeta não quer e sabe que não pode "ser feliz". Sabe que não pode comer chocolates com a mesma verdade que a pequena se refestela. Fosse "feliz" estaria mergulhado na banalidade das sensações, não poderia dar o perspectivo "passo atrás", não sentiria a necessidade de desermanar-se das coisas e não as veria como são: sonho.

Nesse poema Fernando Pessoa expressa sua compreensão de que a Tabacaria não existe: ela é Metafísica.


The Verve - Bitter sweet symphony

R.E.M - Imitation of life


Chico Buarque - Futuros amantes

Adriana Calcanhoto - Esquadros

Los Hermanos - O Vento

The Matrix

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Salgadinho de bacon é kasher?

Há muito tempo atrás, numa galáxia muito distante, eu era moderadora de uma comunidade do Orkut chamada "Perguntas Cristãs Ridículas". Muitos consideravam que a comunidade se destinava a ridicularizar o Cristianismo, mas muito pelo contrário, seu objetivo era esclarecer dúvidas teológicas populares reais e pertinentes, mas que num primeiro momento pareciam "risíveis" ou "ridículas".

A muitos escapa que mesmo as dúvidas religiosas mais tresloucadas e descabidas trazem subjacentes importantes e necessários esclarecimentos sobre religião. E o mais curioso é que a primeira, e mais fácil resposta, sempre é a errada. Teologia não é coisa para amadores, embora muitos semi-analfabetos se arroguem suma autoridade interpretativa...

O tema desta postagem pode parecer "ridículo" e ter uma resposta óbvia e fácil. Mas nada em religião é óbvio e fácil, embora muitos gostem de assim pensar. A resposta imediata, e errada, seria: "É ÓBVIO que salgadinho de bacon não é kasher, pois bacon é carne de porco, e porco não é kasher." Mas antes das respostas menos óbvias, permitam-me ser exata sobre meu questionamento.

"Kasher" ou "Kosher" em hebraico significa "adequado", se referindo aos alimentos permitidos pelas leis dietéticas judaicas. A mais conhecida interdição é a do consumo de carne de porco, porém são dezenas as demais leis.

"Salgadinho de bacon" é também chamado de Pellet, ou "baconzitos" na marca mais famosa à venda. Vejamos a descrição sucinta que a embalagem faz do produto: "Salgadinho de trigo sabor bacon. Contém aromatizante sintético idêntico ao natural". Hum... "de trigo", "aromatizante sintético" (artificial).

Vejamos os ingredientes: "farinha de trigo fortificada com ferro e ácido fólico, fécula de mandioca, óleo vegetal, preparado para salgadinho sabor idêntico ao natural de bacon (sal, farinha de arroz, açúcar, amido, maltodrexina, glucose, extrato de carne, realçador de sabor glutamato monossódico, aromatizante e corante caramelo), sal e fermento químico bicarbonato de sódio. Contém Glúten."

* Possibilidade de resposta número 1: a apressada *

Salgadinho de bacon é kasher pois "carne de porco" não está entre os ingredientes, apenas "extrato de carne", que, subentende-se, seja de bovino. Ademais, como não há leite nem derivados listados entre os ingredientes, o salgadinho não viola a interdição de ingerir conjuntamente leite e carne. Portanto, coma seu baconzitos tranquilo."

* Possibilidade de resposta número 2: a orgulhosa *

Salgadinho de bacon pode ser kasher pois "carne de porco" não está entre os ingredientes, apenas "extrato de carne". Porém é necessário verificar com o fabricante que tipo de carne é utilizada. Nesse momento a pessoa cheia de si visita o site, telefona para o SAC da Elma Chips ou mesmo vai pessoalmente à fábrica para certificar-se de que a carne usada é de boi e não de porco. Certificada disso, a resposta seria que sim, o salgadinho é kasher pois verifiquei pessoalmente que nele não entra nenhum ingrediente derivado do porco.

* Possibilidade de resposta número 3: a prudente *

Salgadinho de bacon pode ser kasher pois nele não entra nenhum ingrediente derivado do porco nem nele se mistura carne com leite. Porém, o pacote tem selo kasher? Apenas um selo kasher certifica que o produto foi fabricado dentro das leis dietética judaicas, não entrando em contato com maquinário contaminado nem contendo restos de insetos e outras coisas não kosher, sendo manipulado com toda a higiene e respeito ao cashrut. Se o pacote tem este selo, pode comer tranquilo.

* Possibilidade de resposta número 4: a zelosa *

Salgadinho de bacon pode ser kasher pois nele não entra nenhum ingrediente derivado do porco nem nele se mistura carne com leite, se o pacote for assinalado com o selo kasher. Porém, vc comprou esta embalagem numa loja judaica? Se não, como vc pode ter certeza se ela não foi transportada junto com derivados do leite, ou carne de porco? Como vc pode ter certeza se baratas e formigas não caminharam sobre ela? Ou se ela foi manipulada por uma funcionária menstruada, ou por um funcionário idólatra? Portanto, apenas se vc comprar seu baconzitos com selo kasher numa delicatessen judaica, vc poderá estar seguro de ele ser, realmente, kasher.

Alguém tem uma quinta possibilidade de resposta?

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Fernando Pessoa - "Tabacaria", via Álvaro de Campos

[grifos feitos pela blogueira]

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.

Lisboa, 15 de janeiro de 1928

Oasis - The Masterplan

Oasis - Champagne Supernova


Veja minha breve análie deste poema: Visita à "Tabacaria" de Fernando Pessoa
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