sábado, 27 de abril de 2013

O carro perfumado

Era 1995. Eu contava 12 anos e passava pela parte mais difícil de minha vida. Não por ter 12 anos e estar em plena efervescência hormonal. Mas por viver num ambiente muito pouco propício a um saudável desenvolvimento psicológico, de qualquer pessoa.

Morava à rua Pedro Pires, 427, Vila Carrão. O pior endereço, de longe, no qual já tive a má sorte de residir. Não pela localização, não pela casa, mas pelas pessoas q comigo moravam. Eu residia com minha ex-mãe, Regina, e com seu amásio, R. 

Certo domingo eu havia combinado com minha amiga Luciana, que estudara comigo na quinta série, e que não mais era minha colega, de irmos ao cinema do Shopping Aricanduva. Vivendo na megalópole "Sampa", bastante intimidadora para qquer tipo de deslocamento de uma pessoa inexperiente que poderia com muita facilidade "se perder para todo o sempre". Eu avisara no dia anterior a Regina deste combinado, e estava tudo certo para ela me levar ao shopping, eu encontrar minha amiga e com ela ver o filme enquanto Regina dava umas voltas e fazia umas compras por lá mesmo a tempo de eu sair da sessão e voltar com ela para casa. Tudo muito certinho.

Mas na manhã de domingo, não lembro ao certo o motivo, Regina resolveu que iria "me punir" por alguma coisa que eu havia ou não havia feito não mais me levando ao shopping. Chocada e em protesto, lhe disse algo como:

- Mas já estava tudo combinado! Já confirmei com a minha amiga que eu vou! Ela vai ficar muito brava se eu não aparecer!

Ao que Regina deu de ombros, e disse:

- Vá de ônibus!

Com frescos 12 anos, eu não tinha a menor idéia de como chegar de ônibus ao Shopping Aricanduva. E em 1995 ainda não havia internet como hoje, em que num simples click podemos tirar esta dúvida, nem nada que se parecesse com o GPS, ou Foursquare...

A discussão foi crescendo a um ponto em que percebi que Regina "amava mais" seu carro do que a mim, e que valorizava por demais seu próprio descanso, em detrimento de qualquer aspecto de minha vida. Eu tinha 12 anos, mas já era bem a mesma Fernanda que sou hoje. Num rápido lapso, pensando o que a poderia "abalar" e fazer capitular, subi as escadas como um raio, entrei em seu quarto e, bufando, tranquei a porta. Pensando em que tipo de retaliação lhe poderia fazer, vi em cima do gaveteiro contraposto ao espelho seu único vidro de perfume, enquanto Regina esmurrava a porta.

O peguei, fui até a varanda que dava para a garagem no andar de baixo e comecei a gritar, com todo o destempero do peito aberto de uma adolescente:

- Você ama essa p***a deste carro muito mais do que a mim! Quer saber, já que vc ama tanto a p***a deste carro, vou encher ele de perfume!

Regina, vociferava a esta altura já da garagem, do andar de baixo. Lembro-me até hoje do exato tom de azul bebê daquele frasco de "Tathy" do Boticário enquanto eu percebia: "se eu tacar o perfume fechado no carro, vai espatifar o para-brisa, ou amassar o capô, e isso vai dar uma merda enorme!" Então, inteligentemente, não taquei o vidro fechado sobre o carro, desenrosquei a tampa e, com prazer venenoso, despejei todo o seu conteúdo sobre o capô, enquanto Regina assistia boquiaberta.

- Agora seu carro tá bem perfumadinho!

Enquanto Regina subia e descia as escadas maniacamente, esmurrando a porta de vez por outra enquanto berrava descontroladamente coisas absurdas de qualquer mãe dizer a uma filha, peguei o telefone de seu quarto e liguei para Luciana:

- Minha mãe tá dando chilique aqui em casa e não vai mais me levar pro cinema, não vou poder ir.

Luciana, que também tinha seus problemas, me compreendeu, e disse:

- Vou pedir pra minha mãe passar na esquina da sua casa 13:30. Se vc puder sair, esteja lá e minha mãe te leva!

Lhe dei mil agradecimentos e falei que faria o possível. Num dos intervalos em que percebi que Regina estava no andar de baixo, rapidamente destranquei a porta, corri pro meu quarto e tranquei a minha porta. Peguei minha mochilinha com minha carteira, dinheirinho e documentos e fiquei "de tocaia". Ela veio esmurrar minha porta mais uma ou 2 vezes enquanto gritava impropriedades. Uma hora depois, ainda em tempo de ir ao cinema, ouvi o barulho do chuveiro no andar de baixo. Como seu amásio não estava em casa, percebi que Regina estava momentaneamente "fora de combate", peguei minha mochilinha, minha chave, e saí.

Esperei por mais de uma hora na esquina até que o carro da mãe de Luciana parou para me pegar. Consegui controlar o choro e quando ela me perguntou o que tinha acontecido, disse:

- Prefiro não falar sobre isso. Vamos mudar de assunto.

Sua mãe nos deixou no shopping, lhe deu um beijo, 20 reais, e disse:

- Me liga quando terminar a sessão que em meia hora eu te pego aqui mesmo.

Muito sorridentes e independentes, fomos ao cinema e vimos à (péssima) fita Debi & Loyd. A final do filme, enquanto íamos ao banheiro, disse a Luciana:

- Eu não queria voltar ainda pra casa, podemos ver mais um filme?

Ela me deu um meio sorriso de comiseração, daqueles que a gente nunca gosta de receber, e disse que tudo bem, ainda eram 4 horas, cedo, mas que tinha que ligar para sua mãe para avisar, se não ela ficaria preocupada.

Depois de ligar, me disse se eu não devia também ligar para minha mãe, pois ela poderia se alarmar com minha "demora extra", ao que eu disse que não era necessário. Voltamos ao cinema e assistimos à (razoável) fita "Ninguém Segura Este Bebê".

Saímos, muito alegres, ela ligou para sua mãe vir nos buscar, comemos alguma coisa, e quando fomos ao lugar combinado, percebi que já era noite. Enquanto sua mãe tomava o caminho da minha casa, me passaram na cabeça mil cenários do que poderíamos encontrar, afinal, eu saíra antes do almoço sem avisar, eu tinha 12 anos, e já era noite. Teria Regina chamado a polícia para me reportar como desaparecida? Teria Regina "convocado" familiares ou psicólogos para uma intervenção? Estaria ela me esperando sentada no sofá, com o pezinho balançando, para uma "conversa séria e definitiva"?

A mãe de Luciana me deixou na esquina e dei um suspiro de alívio ao perceber que não havia nenhuma viatura na porta de casa. O carro de Regina continuava na garagem, exalando um cheiro nauseante de Thaty. Girei minha chave na porta de entrada com um calafrio, de se daria de cara com ela na sala. Ufa! Não! Ninguém na sala.

Rapidamente corri pelas escadas, e enquanto passei pela frente de seu quarto com a porta fechada, ouvi que sua TV estava ligava. Corri e me tranquei no meu quarto, o sangue gelando nas veias: se daria tempo de trancar a porta antes que ela invadisse o recinto e me batesse. Tranquei e sentei no chão, contra a porta, com a certeza de que logo ela viria me dar um sermão de como ela tinha ficado preocupada e desesperada com o meu sumiço. Um, 2, 3 minutos, nada.

Fui para a cama, repassando os acontecimentos do dia. Meia hora, uma hora, 2 horas, nada!

Depois foi 1 dia, 2 dias, uma semana, nada! Ela simplesmente nunca mais tocou no assunto.

Eu tinha 12 anos mas já sabia que a pessoa responsável por ter "conversas sérias" comigo estava pouco se lixando em ter "conversas sérias" comigo e me dar orientações para a vida. E que a pessoa que mais deveria "se preocupar comigo" e cuidar de mim estava pouco se lixando para qualquer coisa minha.

Este foi o pior endereço em que morei e as pessoas que comigo lá moravam as que tive a maior infelicidade em conhecer. Esse foi o período mais triste de minha vida.

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sábado, 20 de abril de 2013

De Orlando Nunes

Nunca estive na presença de Orlando Nunes José, nem sei se este é seu nome de "pessoa física". Caso ele chegue a este texto e queira que seu nome seja suprimido, trocado pelas iniciais, basta deixar um comentário.

O conheci em 2005, na comunidade Perguntas Cristãs Complexas. Era uma comunidade do Orkut de debates religiosos que se distinguia por sua proposta democrática, variedade de participantes, pluralidade e pelo elevado nível dos debates. Mais do que tudo, era um espaço único, no qual pessoas de diferentes credos podiam interagir, comparar seus dogmas, ver os pontos fracos e fortes de cada vertente teológica.

Os debates eram muito variados. Desde temas do "dia a dia" como sexo, vestuário, alimentação, comportamento e política, até pequenas abstrações filosóficas impalpáveis, mas teologicamente essenciais.

Nessa época eu me classificava como "espírita kardecista". Ainda o digo quando perguntada por alunos. Foi no período de amadurecimento teológico durante o qual participei desta comunidade que me descobri Noachide. Na comunidade, ao assim começar a me dizer, os membros entendiam a o que eu me referia. Seu eu me declarar "filha de Noé" aos meus alunos, seria muito difícil fazê-los entender do que tal se trata. E o Noachidismo pode nem ser considerado uma "religião", mas uma derivação do Judaísmo.

Orlando Nunes era calvinista. Protestante histórico seguidor de João Calvino, o célebre reformador franco-suíço. Se destacava por ser, ou aparentar ser, uma pessoa madura, equilibrada, pluralista, e de profundo conhecimento teológico. Por sua postura sempre ilibada, todos os membros lhe dedicavam o mais alto respeito, eu inclusa. Até o admirava por sua seriedade e simpatia.

Ainda na PCComplexas tivemos alguns debates memoráveis. Um ponto que exploramos até a exaustão foi se, ao ser suspenso no madeiro (a cruz) o corpo de Jesus se tornou maldito, conforme:

Deuteronômio 21:
22 Se um homem sentenciado à pena de morte, for executado e suspenso a uma árvore, 23 seu cadáver não poderá permanecer na árvore durante a noite. Você deverá sepultá-lo no mesmo dia, pois quem é suspenso torna-se um maldito de HaShem. Desse modo, você não tornará impuro o solo que o eterno seu D'us lhe dará como herança.

Gálatas 3:
13 Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se ele próprio maldição por nós, como diz a Escritura: «Maldito seja todo aquele que for suspenso no madeiro.»

Orlando simplesmente não podia conceber a idéia de seu deus e messias ter se tornado maldito ao morrer. E, tecnicamente, Jesus foi suspenso num madeiro ao ser crucificado, tornando-se, assim "maldito" de acordo com as Escrituras, o que para ele era uma interpretação herética. Podia ser blasfema para ele, mas essa acepção tem amplo respaldo, com duplo testemunho, na Bíblia que ele próprio considerava sagrada. Também debatemos, provavelmente por meses, a questão do livre arbítrio, que os calvinistas negam existir, e que é fundamental para 90% das outras vertentes cristãs.

Debatíamos, discordávamos, refutávamos um ao outro. E ambos tirávamos grande prazer disso. Tudo ia muito bem até que o "clima político" da PCCplex foi pesando por diversas efemérides, mas especialmente por a proposta de "Democracia plena" não se concretizar, e algumas atitudes questionáveis do grupo de moderadores.

A coisa foi crescendo a um ponto que muitos dos membros "chave" pensavam em debandar em protesto. Nesta circunstância, Orlando Nunes me mandou um e-mail com uma proposta muito interessante: a de fundarmos nosso próprio espaço, convidando os dissidentes, uma nova comunidade de Perguntas Cristãs, essa sim democrática, aberta, plural e transparente.

Incluímos nesta troca de e-mails tb ao grande amigo que fizemos na PCX Alex "Aleph" de Paula, cristão evangélico neopentecostal da Assembléia de Deus. E Aleph prontamente aderiu ao projeto. Detalhe bastante significativo é que tanto Orlando Nunes como Aleph são pastores evangélicos certificados, ainda que não o exerçam. E ambos me viam em nível de igualdade com eles para dar início a um projeto, para nós, tão importante. Nem posso dizer como me senti honrada, em minha pequenez cheia de defeitos, de que pessoas com tão alto prestígio no "meio religioso" tanto virtual como físico, me vendo como "no mesmo nível" deles!

Tb convidamos para ser membro fundador conosco ao biólogo, naturista, defensor dos Direitos Humanos, budista e jedi Arthur "Dogbert" Golgo Lucas, mas por uma série de desencontros virtuais, ele se tornou membro, mas não com tanta participação.

Nas conversas por e-mail entre mim, Orlando Nunes e Aleph foi decidido que "reciclaríamos" uma comunidade quase inativa do Orlando Nunes, a "Cristianismo Puro e Simples", a rebatizaríamos de "Religião & Vida", promulgaríamos regras democráticas (a parte de criar esta legislação ficou, com muito gosto, na minha responsabilidade), convidaríamos os membros da PCC-plex e de outras comunidades de debate religioso, fazendo da nossa comunidade o que a PCComplexas deveria ter sido.

No começo, foi tudo muito bem. A comunidade bombou. Muitos membros de outras comunidades além da PCComplexas aderiram e participavam ativamente da nossa. Nessa época, eu já trabalhava, e não podia mais, como antes, dar longos plantões nos debates de que tanto gostava. Mas diversos tópicos interessantes pululavam em comentários. Rapidamente a comunidade ultrapassou mil membros. Até moderadores que haviam motivado nossa saída da PCX "faziam as honras" de ir até nossa comunidade para debater conosco. Na nossa comunidade, as regras que eu elaborara e colocara em votação protegiam a liberdade de expressão de todos muito melhor que as regras da PCX que nos haviam feito sair de lá.

Ainda nessa época em que tudo eram flores, eu estive em São Paulo, e conversei com o Orlando para nos encontrarmos pessoalmente. Falei com ele ao telefone, combinamos de finalmente nos conhecer no Conjunto Nacional, na esquina da Avenida Paulista com a rua Augusta. Perto da hora acertada fui a um Cyber Café, só para "dar um tempo" e vi uma mensagem sua com alguma desculpa ou justificativa de que ele não poderia ir. Isso deveria ter levantado um sinal de alerta, mas não o percebi. O coloquei na conta dos "bolos comuns" que as pessoas nos dão por conta de algum "imprevisto", e não mais me preocupei a respeito. Deveria.

Tudo continuou a ir muito bem na comunidade... Até que... Começaram a surgir os problemas. Orlando começou a demonstrar incômodo com o teor e o rumo "liberal", "blasfemo" ou "não edificante" (no seu ver) dos debates. Começou a criticar os demais moderadores e a querer "mandar mais" que eu e o Aleph. Com nossos protestos, Orlando tirou da manga o trunfo que jamais pensei que tinha guardado: que ele era o "dono" anterior da comunidade, portanto, ela lhe pertencia mais do que a nós.

Debatemos isso num tópico. Sabendo que ele estava a usar um argumento falacioso, copiei e colei os trechos dos e-mails que trocamos combinando os termos da fundação da R&V. E ressaltei em negrito todas as vezes que ele colocou, por escrito, "NOSSA comunidade". E lhe disse: "se em cada vez que vc escreveu NOSSA COMUNIDADE vc tivesse escrito MINHA COMUNIDADE, eu não teria aderido ao seu projeto."

Ao invés de perceber seu erro, ele ficou "ofendidinho" por eu estar divulgando o teor dos e-mails que havíamos trocado. Logo o Aleph renunciou ao seu posto de moderador. Em solidariedade a ele e por já estar bem de saco cheio de tudo aquilo, muito frustrada e me sentindo lograda, tb renunciei, no mesmo dia. Orlando manifestou estar se sentindo traído.

Depois disso meio que "larguei mão" e não ia mais todo dia lá debater, apenas dava uma "conferida no fórum" esporádica, sem me engajar muito. Depois de um tempo, não sei bem como ou pq o próprio Orlando renunciou a prosseguir moderando "nosso/seu" grupo, repassando-o a outros moderadores. Por vários meses assim ficou a comunidade.

Até que... Sumiu!

Demorou para cair a ficha. Por algumas semanas, eu entrava no Orkut, acessava o link dos favoritos da R&V e ele simplesmente não abria. Eu tinha certeza que era algum erro temporário até que entrei em contato com Jarson Brenner e ele me disse o que havia acontecido. Inadvertidamente Orlando Nunes havia, não sei tecnicamente como, reativado sua condição de "dono" da R&V e simplesmente a DELETADO. Sem explicação, sem justificativa, sem saída, sem registro. Por debaixo dos panos, ele havia desaparecido sumariamente com uma comunidade muito ativa, deixando órfãos, perdidos e desnorteados seus mais de mil membros. Que nome se dá a isso?

Me falaram que o Orlando provavelmente tencionava se tornar um "líder religioso" e fazer da R&V "sua congregação virtual ", na qual ele arregimentaria adeptos para sua visão teológica. E quando viu falhar o projeto de fazer dessa comunidade seu "trampolim" para construir um bom nome no meio religioso, decidiu, sumariamente, deletá-la, sem nenhum respeito aos membros ativos e aos membros fundadores, que tantas horas e tanta dedicação haviam destinado a esta comunidade virtual.

Nem sei se consigo adjetivar de forma justa este ato, nem como ele me surpreendeu da pior forma possível. Por todos os anos de convivência com Orlando, pelo tanto que eu o respeitava e achava que o conhecia, e pelo próprio discurso que ele fizera quando da fundação da comunidade, nenhum de nós suspeitava que ele seria capaz de um ato tão baixo, tão vil. Eu não havia jamais visto nenhum "sinal de alerta" de que ele seria capaz de nos dar uma rasteira tão inesperada.

Orlando Nunes foi a pior decepção que já tive na Internet.

De certa forma, ter uma boa memória pode ser considerado uma maldição...

Lara Fabian - Love by Grace http://youtu.be/Kjqa_Csf29Q

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sábado, 6 de abril de 2013

De Guedes

Spoil alert: não leia caso não queira se decepcionar com minhas pequenezes adolescentes.

Era 1998. Eu tinha 15 anos e acabara de entrar no Ensino Médio. Estudava na EE Prof. José Marques da Cruz, na Vila Formosa, zona Leste de São Paulo, capital.

Na oitava série, eu completara o Ensino Fundamental ao lado de meus até hoje muito amigos Maristela, Romeu, Gisele e Thaís. Na passagem para o Colegial, Thaís e Gisele se matricularam em outras escolas, mas Romeu e Maristela se matricularam no "Jomacruz" junto comigo, e caímos na mesma sala. Rapidamente nosso "trio parada dura" virou um "quarteto fantástico" com a adição de Francisco Eduardo, o "Chico" ou, para mim, "Chicote".

Em nossa sala de aula havia pelo menos outros 30 alunos, e um deles demonstrava profundo interesse em se tornar o "quinto elemento" do nosso quarteto: TGO, adiante denominado "Guedes", seu apelido, pelo qual já o chamávamos à época.

Os 2 membros masculinos de nosso grupitcho são homossexuais, e embora à época fossem um tanto "jovens demais" para fazer uma corajosa "saída do armário", já era perceptível, e nenhum dos dois disfarçava, que "aquela Coca era Fanta". Também o Guedes era homossexual, mas bem mais afetado que os dois: era, desculpem-me a expressão, uma "bichona", bem efeminada.

Mas, surpreendentemente, seu alvo de interesse em nosso grupo não era nem Chico nem Romeu, mas eu. Não fosse o Guedes gay, eu pensaria que ele estaria com alguma paixonite por mim. E até me perguntaram isso certa vez, ao que respondi:

- O Guedes não quer namorar comigo, ele quer SER EU.

Ele me imitava, adulava, babava meu ovo, ria de tudo o que eu falava, e também o levava tudo muito a sério, puxava meu saco, até um ponto que chegava a ser irritante. Essa sua subserviência me incomodava. Era chato falar as coisas sabendo que ele não as analisaria, simplesmente as aplaudiria, nunca discordaria de mim, nem me enfrentaria, em nada. Não era isso, definitivamente, o que eu procurava em um amigo. Eu procurava pessoas "firmeza", interessantes, com personalidade. E Guedes era um "Maria vai com a Fernanda", que nada me acrescentava.

Eu tinha 15 anos e a maturidade psicológica de uma ervilha, e não me orgulho hoje do que relatarei a seguir.

Percebi que eu poderia "me aproveitar" do "rabinho sempre abanando" deste candidato a amigo. Então lhe disse: "tá bom, se vc quer ser meu amigo, então de hoje em diante vc vai carregar minha mochila e meu material." E ele aquiesceu com um sorriso, como se tivesse sido promovido a minha "dama de companhia". E por várias semanas eu tive um courier, sempre a postos para carregar minhas coisas.

Até que o Guedes fez ou falou alguma coisa que eu não gostei, não lembro exatamente qual foi o motivo, e eu decidi que não queria mais amizade com ele. Mas ele continuou a insistir que queria ser "readmitido" no grupo. Conforme ele não cansava de apelar a Maty, Romeu e Chico, resolvi fazer o seguinte: estipular condições que ele não aceitaria pro prosseguimento de nossa amizade. À época já fumávamos, todos, e eu impus como condição: para falar comigo, ele teria que me entregar toda segunda feira um maço de cigarros, o que garantiria que eu falasse com ele durante a semana.

Eu achava que ele ia rir e falar "de jeito nenhum", finalizando a questão. Mas para minha grande surpresa ele topou, e por algumas semanas eu não precisei mais me preocupar em comprar cigarros, pois o Guedes mos dava, em troca do simples prazer de poder falar comigo.

Eu o destratava, era irascível com ele, na esperança que ele se posicionasse: "estou farto, chega!" Mas não, ele alegremente me entregava um maço de cigarros toda semana e ainda solicitamente se oferecia para carregar meu material, o que só aumentava minha exasperação.

Então resolvi endurecer ainda mais "as condições" para eu "me dignar a dirigir-lhe a palavra": um maço de cigarro não bastava, daquele dia em diante, eu queria semanalmente um maço de cigarro mais 10 reais. E em 1998 R$10,00 era muito mais do que "déis real" hoje...

Eu esperava que ele dissesse "No Way", mas mais uma vez, para meu assombro, ele aquiesceu. E eu simplesmente não acreditei quando na segunda feira seguinte, ele me entregou logo ao me ver à 6:55 da matina, o maço de Marlboro Lights mais uma nota novinha de "dez conto". Também disso desacreditaram Chico, Romeu e Maristela.

Nenhum deles comigo, por "minha amizade estar à venda", pois minha amizade nunca esteve à venda, mas com a absoluta falta de dignidade do Guedes em aceitar as condições absurdas que eu estipulava. Pois amizade, por definição, deve ser incondicional.

Provavelmente o Guedes achou que aqueles dez reais lhe garantiriam meus sorrisos e simpatia, o que não ocorreu: prossegui a desdenhá-lo. Ao final da terceira semana ele finalmente disse que estava farto, e não daria prosseguimento ao nosso "escambo" de afinidades. Fiz um "Ufa!" interno, pois se ele jamais tomasse uma posição, eu só prosseguiria em minha escalada de condições cada vez mais absurdas, e talvez na próxima semana eu passasse a lhe cobrar 20 reais mais o sagrado maço de cigarros.

Ele parou de me adular e de insistentemente tentar entrar em nosso grupo, e jamais vi qualquer outro motivo para readmiti-lo. Eu não via nele nenhuma "substância", "desafio", "personalidade" ou "doçura" que me fizesse querer me aproximar. Eu não via nele nada de "interessante", ou diferente. Eu não via nada que ele pudesse "me acrescentar". Eu nunca quis um "puxa-saco" nem um séquito, uma entourage, de aduladores. E era justamente esse papel que Guedes queria ter, o que muito me irritava. Não me importava que ele fosse gay, queria que ele fosse "homem", uma pessoa com dignidade e auto-respeito.

Sempre fui cheia de "marra" e personalidade, e de certa forma eu sentia que o Guedes me vampirizava, imitava meus trejeitos e gírias, elogiava tudo meu, emulava minha postura, como que planejando ser uma "versão drag" de mim... Ele me achava "o máximo" e, para mim, isso era um pecado mortal, pois nisso eu percebia que ele não me elogiava "de verdade", pois não importava o que eu fizesse, para ele era tudo maravilhoso.

Depois de me formar no terceiro colegial, nunca mais vi o Guedes, mas soube por amigos que o encontraram vez ou outra "na noite" e pelos dark rooms da vida, que após eu já estar bem adentrada no curso de História na USP, também o Guedes estava a fazer o curso de História, mas na UNG (Universidade de Guarulhos). Nunca pude tirar a dúvida se era simples coincidência, mas sinceramente creio que não. Acho que ele se matriculou em História apenas depois de saber, e apenas porque soube, que eu estava a fazer esta graduação.

Não sei se ele se formou, nem se hoje é professor como eu. Hoje me sinto um pouco culpada pela forma como o tratei. Vendo de hoje, percebo como foi completamente absurdo estabelecer condições para ser sua amiga. E como foi surreal que ele tenha "topado" isso. Sinto que talvez ele fosse um garoto muito perdido, e visse em nosso grupo o único que o aceitaria sem levar em conta sua sexualidade.

E nunca foi sua condição sexual que me incomodou: mas sim sua subserviência. Provavelmente ela fosse fruto de uma baixa auto-estima, e se eu tivesse naquela época minha cabeça de hoje, teria procedido de forma muito diferente a respeito dele.

Às vezes me pergunto como estará o Guedes hoje, inclusive me questionando se ele está vivo. Quando estávamos no colegial, ele era obeso. E depois, quando já ambos na graduação, soube pelos que o encontraram na "cena gay" que ele estava assustadoramente anoréxico, e provavelmente envolvido com químicos pesados.

Gostaria de saber que rumo ele levou, se se tornou uma pessoa mais confiante e assertiva, qualidades minhas que eu creio que ele ambicionasse. Se concluiu a faculdade, no que ele trabalha, se continua a frequentar os "inferninhos", ou se transformou-se radicalmente, para um rumo inimaginado. Se ele encontrou pelas veredas da vida "outra Fernanda" na qual se espelhar, e se outras vezes se submeteu às coisas que o fiz passar, se de outras pessoas ouviu calado as "desancadas" que com tanto venenoso prazer eu lhe dispensava.

E qual tipo de desdobramento esses fatos tiveram em sua vida, no que tudo isso resultou, para o bem ou para o mal.

Chico Buarque - Sinal Fechado https://www.youtube.com/watch?v=949SuBskT2U

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